Luta contra a pobreza

Para Ricardo Paes de Barros, um dos mentores do Bolsa Família, política social não se faz à distância

Adriana Terra Colaboração para Ecoa, de São Paulo Sérgio Lima/Folhapress

Tem uma célebre frase do Betinho [o sociólogo Herbert de Souza] que diz que a pobreza é muito barata. O que era incompreensível nos anos 1990, e particularmente nesse momento de pandemia ainda é um pouco, é que a renda necessária para tirar a pessoa da pobreza é mínima se comparada com a renda do Brasil. Uma transferência de 0.5%, 1% do PIB tem impacto gigantesco na pobreza. Porque o país é relativamente rico e muito desigual.

O Bolsa Família é uma pequena ajuda para a dificílima tarefa que é uma família extremamente pobre se inserir na sociedade. Por dez, quinze anos, o programa chegou em quem mais precisa e foi expandindo lentamente. Acho que o problema do Auxílio Emergencial é que a gente entrou de maneira generosa, corretamente, mas saiu desconhecendo as pessoas que mais precisam, porque optou por não dialogar com o pobre.

A gente já fez cálculos de que se você deixar a pandemia rolar, a expectativa é a de que vão morrer 1 milhão de pessoas. A pandemia nos colocou a necessidade de resolver o conflito entre ir e vir e o direito à vida. Só que o custo da vida, que você pode precificar, é muito, muito maior do que o prejuízo de dar uma parada. Um milhão de vidas valem mais do que estamos perdendo economicamente.

Sérgio Lima/Folhapress

Quando o carioca Ricardo Paes de Barros, 66, voltou ao Brasil após doutorado nos EUA, era fim da década de 1980 e a discussão no país era macroeconômica, motivada por anos sem crescimento e inflação alta. Engenheiro e mestre em estatística, seu interesse ia por outro caminho: o comportamento das pessoas e a área social.

Durante a pós-graduação na Escola de Chicago, ele foi aluno de James Heckman, ganhador do prêmio Nobel por seu trabalho com microeconomia. "Sempre houve uma visão grande na área social brasileira, mas nem sempre ela foi baseada em microinformações. A minha contribuição foi conectar esse pessoal com a estatística e outros métodos quantitativos", conta.

Pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) desde a década de 1970, passou os anos 1990 trabalhando em temas que se traduziram no maior programa de transferência de renda do mundo. Criado em 2003 na gestão Lula, o Bolsa Família foi concebido por um grupo de economistas liderado por ele.

"Porque predominava um pouco na academia [a ideia de] que a pobreza era 'multitudo': multifacetada, multidimensional, um fenômeno intrincado. E o que eu dizia era: fiz uma conta aritmética e se a gente transferir uma quantidade mínima, as pessoas ao menos vão ter dinheiro para comida. E eu acho que, sendo o Brasil um país de renda média com desigualdade gigante, passou da hora de tolerar pessoas com fome."

André Borges/Folhapress André Borges/Folhapress

Diálogo com as pontas

Para Paes de Barros, um motivo do sucesso do Bolsa Família é que ele foi focalizado - ou seja, chegou primeiro aos que mais precisavam - e avançou gradualmente. "A gente teve dez, quinze anos de programa com uma disciplina fiscal muito séria. O Brasil, durante todo o período Lula e Dilma, levou a focalização a sério."

Alcançando 14 milhões de famílias (cerca de 43 milhões de brasileiros, mais de 20% da população), o programa ajudou a reduzir a desigualdade no Brasil em 10% em 15 anos, diminuindo a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25% entre os cadastrados, segundo estudo de 2019 do Ipea. Uma pesquisa de 2014 da Universidade de São Paulo mostrou também que o Bolsa Família contribuiu para que as pessoas tivessem acesso a alimentos saudáveis.

Hoje professor do Insper e ex-diretor do Instituto Ayrton Senna, o doutor em economia julga inconcebível, com a riqueza do país, não garantir uma renda mínima per capita aos mais pobres. Vê, no entanto, o Auxílio Emergencial mal desenhado. Em janeiro de 2021, a extrema pobreza disparou: 12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246 por mês. "O problema é que a gente entrou de uma maneira muito generosa, corretamente, mas saiu desconhecendo quem são aquelas pessoas que mais precisavam porque optou por não dialogar com o pobre", diz ele.

Para o professor, que foi subsecretário de Ações Estratégicas da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2011 e 2015, se de início foi correto garantir renda de forma ampla, depois era necessário entender quem ficou mais descoberto - até para cobri-los melhor. "Depois do primeiro mês a gente percebeu que 10 milhões pessoas perderam emprego, e não 70 milhões. Então você vai atrás desses 10 milhões."

Cada uma dessas pessoas do Bolsa Família está fazendo um esforço gigantesco para alcançar uma coisa que muita gente faz pouco ou nenhum esforço [para alcançar]

Ricardo Paes de Barros, doutor em economia e professor do Insper

E havia (e há) como fazer isso. "Se você vai fazer um programa social, nunca é boa ideia você se isolar de quem você está apoiando. Você tem que conhecer o pobre, chegar junto. A questão não é que os brasileiros não sabem quem está sofrendo mais - o governo não sabe, mas tem gente nas comunidades que sabe e poderia te informar. Hoje o Brasil tem 250 mil pessoas trabalhando na assistência social. Nossa política na ponta funciona, mas a gente precisa conversar com ela", diz.

Isso porque faz grande diferença a atuação em campo no diagnóstico das necessidades - e possíveis mudanças no cadastro colocam o Cras (Centro de Referência de Assistência Social), justamente, em segundo plano. "Sempre foi um desafio pro Bolsa Família ter um bom Cadastro Único. A gente passou uma década tentando construir o sistema, que tem um monte de problema, mas é o que a gente tem que ter no futuro."

Para o professor, tanto o melhor uso das informações quanto políticas de inserção produtiva podem ajudar na saída da crise. "Hoje há pessoas precisando menos do dinheiro e mais de assistência técnica para voltar ao mercado de trabalho. O que vamos precisar é uma espécie de [Plano] Brasil Sem Miséria, que não faço a mais vaga ideia de por que não está no ar."

Um obstáculo do Bolsa Família na superação da pobreza, por exemplo, segundo estudo do Ipea citado acima, é o valor do auxílio. Por isso, um projeto complementar de inclusão no mercado como o Brasil sem Miséria é tão importante.

Sérgio Lima/Folhapress Sérgio Lima/Folhapress

Sem pesquisa não se governa

Membro da Academia Brasileira de Ciências e homenageado em 2005 com a Ordem Nacional do Mérito Científico, o carioca diz que outro aspecto do bom funcionamento de um programa social é conhecer e mostrar seus impactos. Para isso é preciso pesquisa.

"Não ter estudos do Ipea sobre pobreza, sobre desemprego neste momento não é bom. O IBGE fez a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Covid, de uma importância gigantesca: a informação dos 10 milhões que perderam emprego nós sabemos por causa desse estudo", diz o professor.

Para ele, essas instituições precisam ser muito mais valorizadas. E, no atual contexto, terão de adaptar a forma de trabalho. "A gente precisa do IBGE hoje mais do que nunca. Impossível governar esse país sem uma informação censitária. Agora, nesse novo mundo, como isso [a pesquisa] pode ser feito? Ninguém pode definir isso com uma lei do Congresso de repente. O que os países bem-sucedidos fizeram na pandemia foi permitir que seus técnicos de níveis mais baixos oferecessem um projeto de reestruturação", coloca.

Sem previsão orçamentária pelo governo, o Censo, previsto para esse ano, não será realizado. O presidente do IBGE, Eduardo Rios Neto, mencionou a possibilidade de realização da pesquisa em 2022.

André Borges/Folhapress André Borges/Folhapress

Economia e valorização da vida

Dando aulas de casa, o professor vê que os países que estão enfrentando bem a crise são aqueles cujas recomendações do governo, de pesquisadores e da imprensa andam juntas. "Quando a elite política está falando coisas de bom senso, que a elite acadêmica concorda, a mídia concorda, aí você tem a população entendendo."

Ele vê a forma como a pandemia vem sendo administrada no país como a pior possível. "Não adianta dar paradinhas e não controlar nada. Se você vai sacrificar a sua economia, sacrifica sincronizadamente. Essa coisa agonizante brasileira é a pior do mundo."

Para o doutor em economia, o conflito entre o direito à vida e o direito de ir e vir posto pelo momento foi resolvido desrespeitando a vida. "Porque ou você escolhe o lado do dane-se a vida, deixa morrer, seleção natural, ou valoriza o que todo mundo diz que a vida vale. Se você dá um valor pequenininho pra vida, pode ser que morra um milhão e tudo bem. Agora, se você vai respeitar a vida, não faça como a gente está fazendo", diz.

"O custo da vida - que você pode precificar - é muito maior do que o prejuízo econômico. Mesmo pegando um valor baixo, um milhão de vidas valem muito mais do que estamos perdendo economicamente."

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

Acompanhe reportagens especiais, entrevistas exclusivas, perfis e colunas para mostrar quem tem criado soluções, instigado reflexões e liderado possibilidades de transformação a partir de diferentes regiões, vivências e realidades.

Ler mais
Topo