Afeto e resistência

Casais trans compartilham histórias de amor e cuidado e exaltam a potência de relações transcentradas

Bruna Barbosa Colaboração para Ecoa, de Cuiabá (MT) Arquivo pessoal

Compartilhar a vida, trocar experiências boas e ruins, dar e receber carinho, constituir família e discutir a relação. Experiências que para tantas pessoas podem parecer triviais, uma parte natural de nossa humanidade, para muitas significa a revolução pelo amor e pelo afeto em uma sociedade que as subjuga e agride.

A partir de relacionamentos transcentrados, isto é relacionamentos formados unicamente por pessoas trans, elas encontraram não só uma forma de resistir no país que mais as mata, como um caminho de fortalecer sua própria individualidade e coletividade, e de criar suas próprias narrativas de felicidade.

"Vamos aprendendo não só a ter uma relação saudável e conhecer um ao outro, mas a nos conhecer também. Vi o quanto ele cresceu e como eu cresci também. Transcentrar é um posicionamento político. É muito potente", conta Marina Mathey, cantora, diretora e colunista de Ecoa, que desde 2020 está em um relacionamento com Digg Franco.

Para celebrar o Dia Nacional da Visibilidade Trans, neste sábado (29), Ecoa conversou com cinco casais transcentrados de diferentes regiões do Brasil para mostrar a força do afeto e sua importância para a construção de uma sociedade sem transfobia.

De mãos dadas, elas e eles compartilham momentos importantes, como a chegada do primeiro filho e a cirurgia de reafirmação de gênero, o lançamento de um negócio e a criação de novas formas de amar e resistir.

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Uma relação transformadora

Antes de conhecer Rafael, a analista de customer experience Cez Siqueira, 23, tinha tido relacionamentos que define como abusivos - sentia-se objetificada, não tinha afeto ou conexão profunda com seus parceiros.

"Não posso chamar de afetivo os relacionamentos que tive antes mas, sim, de carnal. Meu corpo servia de objeto para homens cis, mera diversão", diz ela. Para Rafael de Alcântara, 29, também analista, as relações com pessoas cisgênero haviam sido parecidas.

O casal se conheceu em encontros realizados por movimentos LGBTQIA+ de Vitória (ES), onde mora. Os relacionamentos de poucas trocas do passado deram lugar a uma relação de conversas profundas e frequentes, e em pouco tempo Cez e Rafael decidiram morar na mesma casa.

Os desentendimentos, como em qualquer relacionamento, acontecem, mas o que prevalece, conta Cez, é o afeto emocional, de corpos e de vivências. Para ela, a experiência de dividir a rotina com outra pessoa trans é transformadora. A cada conquista, seja individual ou do casal, experimentam a alegria e "sensação de vitória imensa", mesmo que essa não seja a realidade da maior parte da população trans e travesti no Brasil, explica.

Hoje podemos compartilhar vivências 'transdiárias'. Nos conhecemos e nos 'reamamos' todos os dias

Cez Siqueira, analista de costume experience e namorada de Rafael de Alcântara

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E o teste deu positivo

Uma conversa despretensiosa pelo Instagram e uma promessa de parceria musical foram o ponto de partida para a união da cantora e atriz Isis Broken, 27, de Aracaju (SE), com o também cantor e produtor Lourenzo Gabriel, 23, de São Paulo (SP).

Dois meses depois do primeiro encontro, passaram por um susto comum a tantos casais: a menstruação de Lourenzo atrasou. O cantor conta que os primeiros três testes deram negativo, mas ele não acreditou muito no resultado.

"Com o uso dos hormônios, a minha menstruação tinha parado, mas depois começou a ser bem certinha. Desconfiei e comprei outro teste", lembra Lourenzo. Isis lembra o momento: "Deu positivo e ficamos 'e agora?'.

Há pouco mais de um mês, Apolo nasceu sob o olhar atento da mãe, que acompanhou o trabalho de parto de Lourenzo e cortou o cordão umbilical do filho.

Agora com a chegada do filho e vivendo um relacionamento "digno e possível", Isis celebra a potência de ter formado uma família com Lourenzo e entende o afeto transcentrado como uma maneira de "hackear o sistema".

Tenho um filho que é fruto de uma mãe travesti e de um pai trans. O 'poder da criação' não é mais da cisgeneridade. Não são mais os únicos a perpetuar, nós também temos essa possibilidade, qualquer pessoa com útero tem

Isis Broken, atriz e mãe de Apolo, fruto do relacionamento com Lourenzo Gabriel

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O sonho do próprio negócio

O ambiente seguro, sem julgamentos ou receios sobre quem se é. É assim que Guilherme Grossi, 24, define o namoro com Manuela Silva, 24. Depois de dois anos de relacionamento, a parceria afetiva se estendeu à profissional quando decidiram empreender.

Manuela foi desligada do trabalho, e o casal transformou a incerteza financeira em oportunidade para se aventurar e abrir um próprio negócio: uma loja de panos de pratos divertidos. Aberta há quase um ano, a Eu Passo Pano fez sucesso no Instagram e acabou se tornando a principal fonte de renda de ambos.

"Os clientes da loja abraçaram muito a ideia. Temos aprendido e desvendado os limites um do outro, tentando separar o trabalho da vida pessoal. É uma relação de muito respeito e comprometimento com nossos sonhos, ideias e vontade de expandir nosso negócio", explica Guilherme, que, antes de conhecer a namorada, ainda não havia se relacionado com uma mulher trans. A amizade e parceria que encontrou em Manuela ainda o surpreendem.

Além da loja de panos de pratos divertidos, Guilherme criou um perfil no TikTok para falar sobre o relacionamento. Na rede, o @casaltranscentrado tenta fazer com que mais pessoas saibam sobre o tamanho do afeto que existe entre pessoas trans.

"As pessoas não estão acostumadas a verem trans dentro de um relacionamento. Não é nos dado afeto. Então, quando veem duas pessoas trans se amando, sendo felizes, elas ficam com várias questões na cabeça", diz ele.

Nossa rotina é de muita parceria, decidimos nos mudar e juntar as escovas de dentes no começo da pandemia. Com isso, veio o empreendedorismo. Começamos a trabalhar juntos e buscamos evoluir cada vez mais tanto pessoalmente quanto profissionalmente

Guilherme Grossi, namorado de Manuela Silva e cofundador da Eu Passo Pano

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Cuidados e muita conversa

A fetichização do por parte de homens cis compartilhada por Cez e Isis também marcou os relacionamentos da atriz, cantora e diretora Marina Mathey, 28. Hoje, ela ressignifica o afeto ao lado de Digg Franco, fundador da ONG Casa Chama, espaço coletivo de discussão e ação LGBTQIAP+.

"Não tem nenhuma relação que se equipare a uma relação transcentrada. Passamos por todas as cirurgias juntos. Os momentos mais importantes das nossas vidas. Quando fiz mastectomia, a Marina cuidou de mim. Quando ela colocou os peitos, eu estava com ela", explica Digg.

Marina e Digg mantinham amizade desde 2018, mas começaram a se relacionar afetivamente no começo da pandemia da covid-19, em 2020. A afinidade cresceu justamente num período em que os contatos físicos estavam restritos.

Foi pela tela do celular e dentro das casas onde moram em São Paulo (SP) que deram os primeiros passos na relação e também encontraram acolhimento para as particularidades da hormonização - aplicação de testosterona no caso de Digg e do bloqueador do hormônio para Marina.

As oscilações de humor, mudanças de gostos, desejos, ritmos e intensidade, além de situações de disforia de gênero, são cuidadas com amor e diálogo pelo casal.

"A testosterona 'leva' para um lugar e o bloqueador me coloca em outro. Vamos sempre encontrando esses ajustes, não para nos adaptarmos, mas para nos entendermos", explica Marina.

É por meio do diálogo também que tentam respeitar os limites de cada para que o cuidado não deixe nenhuma das partes esgotada fisicamente ou psicologicamente. O cuidado que têm no relacionamento leva Marina e Digg para outras possibilidades de afeto, com uma relação não monogâmica cuja premissa é que seus corpos sejam livres.

Somos corpos trans, pessoas trans têm mil dificuldades de autoestima, de criar vínculos de afeto. Como vou me sentir proprietário do corpo de outra pessoa, ainda mais uma travesti? São pessoas que amam a Marina, que também me amam, criamos outros afetos e somamos

Digg Franco, namorado de Marina Mathey e fundador da Casa Chama

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Liberdade e respeito no centro

O caminho da liberdade também foi o encontrado por Sol Ferreira e Luisa Nayara, artistas de 23 anos, como base de respeito para o relacionamento, dividido entre Cuiabá e Várzea Grande, em Mato Grosso.

É a primeira vez que Sol e Luisa estão em uma relação nomeada como "namoro". Para que dê certo, diálogo e sinceridade são fundamentais, assim como o respeito pela existência enquanto seres individuais. A artista ressalta que o ponto central em qualquer relação é a empatia.

Para Luisa, que também já sofreu com a hiperssexualização do seu corpo, o relacionamento não monogâmico com Sol também é uma estratégia de autopreservação. "Para que eu não saia ferida, como já aconteceu antes. E ainda acontece muito com minhas irmãs transfemininas", explica ela.

Estar com outra pessoa que vivencia coisas semelhantes acaba tornando a relação mais tangível. Sei que outra pessoa trans conhece e compartilha comigo medos, traumas e anseios

Luisa Nayara, artista e namorada de Sol Ferreira

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