Um mundo sem PIB

A busca por um novo índice econômico é caminho para equilibrar desenvolvimento, sociedade e natureza

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo Estúdio Barlavento/UOL

As especulações sobre o mundo após a pandemia incluem cenários muito distintos: será um mundo mais globalizado, mais nacionalista ou mais comunitário? Mesmo sem conseguir cravar agora uma dessas opções, algumas tendências aceleraram muito e outras surgiram em 2020 como efeito do "novo normal".

Sai reforçada a economia digital e, como consequência, vê-se a desmaterialização do comércio. Por outro lado, mostrou-se imprudente a dependência de linhas de produção em países distantes. As soluções locais e hiperconectadas se viram em destaque. As redes públicas de proteção social e as decisões coordenadas baseadas em dados e na ciência mostraram sua importância. E as políticas ambientais voltaram com força para a agenda com a amostra de catástrofe global que a Covid-19 apresentou.

Tanto é assim que em vários pontos do planeta os governos já planejam uma guinada verde para sair da estagnação — até o FMI tem apontado este como caminho para vencer futuras crises. É o caso da Coreia do Sul, que teve eleições em meio à pandemia. Outro exemplo vem da Nova Zelândia, um dos governos mais eficientes no combate ao vírus, que vai apostar em empregos verdes. Já Amsterdã, capital da Holanda, adotou uma teoria econômica criada na Universidade de Oxford que usa como figura didática um donut para mostrar que cada decisão pública tem impacto sobre as esferas humana, social e ecológica.

E quem está em xeque novamente é o PIB. O Produto Interno Bruto foi alçado em 1944 à condição de melhor ferramenta para medir a economia de um país. Sua simplicidade, ao somar a produção de bens e serviços e comparar esse número com o do ano anterior, fortaleceu o PIB como padrão global. Porém, com o passar do tempo e surgimento de novos desafios, acabou ficando simplista. Em 2020, o septuagenário índice, que já devia estar aposentado, vai ser negativo em todo o mundo — talvez ainda mais negativo para os governos que o priorizaram em detrimento da saúde de sua população.

A busca desenfreada pelo crescimento contínuo tem sido apontada como uma das razões para a devastação de ecossistemas e para o aquecimento global, que pode gerar crises planetárias maiores que a atual. O mundo busca agora novos indicadores para se guiar. Vale acrescentar dados sociais, políticos, ambientais e até pesquisa de opinião para saber se as populações estão contentes com suas nações, afinal, a busca da felicidade deve ser o item mais bem distribuído do mundo.

Essa pandemia serviu como um freio de arrumação, uma desaceleração a fórceps. E vai abrir espaços para mudanças. As pessoas perceberam o papel do Estado. A sociedade vai se colocar mais e melhor na discussão. E parar de pensar que felicidade é só consumir muito

Tânia Bacelar, professora de emérita de economia da Universidade Federal de Pernambuco

Qual é a nova bússola?

A superprodução de dados da era digital aumenta a possibilidade de índices mais abrangentes, mais precisos e mais reveladores para ajudar as autoridades a tomar decisões. Aliás, a palavra "estatística" tem a mesma raiz latina de "estado", e o estudo dos números populacionais é parte da governabilidade desde o século 19. O problema é que nesta era datacêntrica, como o historiador Yuval Harari classificou nossos tempos, as grandes empresas produzem, processam e utilizam mais informação do que os governos.

Uma das questões para substituir o PIB é criar um padrão simples e que seja aceito pelos países. Afinal, adotar um novo padrão pode significar ver sua posição despencar no ranking mundial a depender dos indicadores colocados na balança. Em 2016, a Comissão Estatística da ONU divulgou que tinha à disposição 230 indicadores para monitorar o desenvolvimento sustentável das nações. Desses, 93 obedeciam aos critérios de serem reconhecidos internacionalmente, terem metodologia clara e estarem disponíveis em pelo menos metade dos países da ONU (193 membros).

Em meio a essa enxurrada numérica, o economista norte-americano Jeffrey Sachs e a iniciativa Rede de Soluções em Desenvolvimento Sustentável (SDSN, em inglês) lançaram com o apoio do então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, o índice SDG, que lista 156 países em seu balanço.

Se o Brasil é a nona nação mais rica do mundo segundo o ranking do PIB, sua posição é bem mais modesta no SDG: 56ª posição, ao lado do Vietnã. Essa listagem leva em conta os 17 ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável) estabelecidos pelo acordo climático de Paris para a agenda 2030.

Aproveite o ar despoluído da quarentena, tome fôlego e saiba a lista de temas que entram nessa conta: pobreza, fome, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente, justiça social, entre outros. Ufa! Algo bem mais complicado do que somar o total da produção. Mas também mais relevante e revelador.

O coronavírus não é nosso grande problema. O problema é a mudança climática e a desigualdade social. Cuidar das pessoas e do planeta é central. É uma falsa questão ficar falando em mais mercado ou mais estado. Não é um ou outro. É um e outro

Carlos Gadelha, economista da Fiocruz

O que não falta é opção

A primeira das mais de 15 alternativas existentes para superar o PIB foi o IDH (índice de Desenvolvimento Humano), criado em 1990 pelos economistas Amartya Sen e Mahbub ul Haq e adotado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que divulga relatórios anuais há três décadas.

Esse indicador usa três dados para mostrar a prosperidade de um país: taxa de escolaridade, longevidade e renda média (o PIB por pessoa). Apesar do avanço, por incluir temas como educação e saúde na sua equação, ele passou a ser criticado posteriormente por não levar em conta o tema ecológico e desconsiderar liberdades políticas - o que explicaria a Arábia Saudita, uma monarquia autoritária que vive do poluente petróleo, estar na 36ª posição.

Por seu lado, o Brasil melhorou muito seu IDH nas décadas de 1990 e 2000, mas desacelerou na década seguinte até estagnar nos últimos anos (hoje ocupa o 79º lugar), devido principalmente à crise econômica a partir de 2015 e ao abismo social dentro de sua população.

O principal problema brasileiro fica escancarado observando outro ranking elaborado pela PNUD: o país é atualmente o sétimo colocado em desigualdade de renda dentro de sua população, só superado por países africanos. "Nós estamos em plena revolução tecnológica, com as inteligências artificiais processando bilhões de dados. Essa sociedade do conhecimento gera novas desigualdades, e temos que estar atentos a isso", afirma Tânia Bacelar, professora emérita de economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Os pobres subiram pelo mesmo caminho que desceram. O congelamento do Bolsa Família e a crise econômica devolveram à pobreza quem tinha saído dela. A porcentagem de pessoas na extrema pobreza em 2014 só iria ser retomado em 2030, segundo projeções. Mas, com essa pandemia, isso não deve acontecer tão cedo

Marcelo Neri, economista e diretor da FGV Social (Fundação Getúlio Vargas)

Por um mundo mais doce

Assim como os novos índices, como o SDG (sigla para Sustainable Development Goals, os objetivos para o desenvolvimento sustentável), novas teorias econômicas tentam unir homem, sociedade e ambiente em uma conta só. A solução mais pop até agora foi usar uma rosquinha doce para ilustrar a complexa conexão: o donut.

A proposta de Kate Raworth, economista do Instituto de Mudanças Ambientais da Universidade de Oxford (Reino Unido), é um sistema no qual as necessidades de todos serão atendidas sem esgotar os recursos do planeta - em contraponto à lógica atual de criar necessidades, estimular um crescimento ilimitado e, depois, ver o impacto disso.

No anel interno, estão os elementos para uma boa vida, em alinhamento com os ODS da ONU - alimentação, habitação, educação, saúde, equidade, saneamento, energia, renda e participação política. As pessoas ocupam o anel central, com o necessário para viver bem e respeitando os limites ambientais. Já o anel externo representa as fronteiras ecológicas, estabelecidas pela ciência, para evitar que mudanças climáticas comprometam a vida no planeta.

O modelo pode ser aplicado para pessoas, famílias, empresas, cidades e países. Amsterdã foi pioneira e adotou o sistema para sair da crise pandêmica. O principal problema da capital holandesa atualmente é a falta de habitação popular. A solução encontrada usando esse sistema foi legislar em duas frentes: por um lado as novas construções deverão usar material reciclado (para reduzir a emissão de poluentes) e, por outro, leis vão desestimular que os imóveis sejam usados como investimento.

O impacto que o mundo está experimentando faz as pessoas se afastarem da ideia de que o crescimento econômico é sinônimo de desenvolvimento. Desenvolvimento tem a ver com bem-estar e equilíbrio. É assim na saúde pessoal e também com a saúde do planeta

Kate Raworth, economista da Universidade de Oxford, Reino Unido

A invisível economia da natureza

Enquanto o PIB Verde não saiu do papel (no Brasil, o IBGE começou os estudos, mas a comissão que analisava o tema foi dissolvida pela gestão Jair Bolsonaro), o ranking atual com mais prestígio para medir a preservação da natureza é o EPI, índice de performance ambiental elaborado a cada dois anos pelas universidades norte-americanas de Yale e Columbia, com apoio do Fórum Econômico Mundial e a União Europeia.

São avaliados nove critérios ambientais, desde saneamento até biodiversidade. Enquanto a Suíça liderou nos últimos rankings, o Brasil oscilou ao sabor de alguns avanços e vários retrocessos (o país vai bem em qualidade do ar, mas tem decepcionado no item desmatamento). O próximo relatório deve sair em meados deste ano.

Essa aritmética ambiental não é fácil. O economista indiano Pavan Sukhdev, em trabalho encomendado por um conselho de ministros do meio ambiente de vários países em 2008, apontou que a natureza concede anualmente para a humanidade U$ 2,5 trilhões (valor maior que o PIB brasileiro, que não chega a US$ 2 trilhões). Um estudo desenvolvido uma década antes pelo economista norte-americano Robert Constanza somou US$ 33 trilhões anuais como a média desse fluxo de caixa não contabilizado de produtos e serviços prestados, um valor equivalente aos PIBs atuais dos EUA e da China somados, as duas maiores economias mundiais.

Durante a atual crise, a ONU lançou documento defendendo que o desenvolvimento sustentável seja adotado para a recuperação frente à Covid-19 seja "rápida, justa, verde e inclusiva".

Vários planos e acordos pelo mundo têm verde como adjetivo, mas eles vão muito além de uma palavra: calcula-se que seriam necessários US$ 100 trilhões em investimentos até 2030 para cumprir as metas climáticas.

A União Europeia lançou o seu Acordo Verde em dezembro passado, e uma aliança de ministros, empresários e ativistas do continente conclamou que ele seja cumprido ou acelerado no cenário de pandemia. A China, que lidera o mercado mundial de tecnologias verdes, tem reafirmado seu compromisso. Coreia do Sul e Nova Zelândia apontam que a guinada ecológica pode reativar suas tecnologias. Nos EUA, o presidenciável democrata Joe Biden prometeu abraçar as ideias do "Green New Deal" na campanha em que enfrentará o atual ocupante da Casa Branca, o republicano Donald Trump.

A Amazônia é uma fábrica de chuva que produz 20 bilhões de toneladas de vapor d'água por dia. Essa produção é carregada por correntes de ar em direção sul e irriga uma agricultura que vale U$ 240 bilhões (R$ 1,24 tri). A Argentina, o Paraguai, o Uruguai e grande parte do Brasil não pagam nada aos estados amazônicos por isso

Pavan Sukhdev, economista indiano

Para ser feliz...

Felicidade não se compra, como diz o ditado. Mas ela se mede, com várias réguas. A primeira ideia foi a criação da FIB (Felicidade Interna Bruta), saída em 1972 do reino budista do Butão, encravado na cordilheira do Himalaia. A ideia foi encampada pela ONU, que reuniu critérios ausentes em outros indicadores como lazer e preservação cultural.

A iniciativa deu origem ao Relatório Mundial de Felicidade, elaborado anualmente desde 2012. Nesse período, o Togo foi o que mais evoluiu para a felicidade (de 156º em 2017 posição para a 139ª em 2018), enquanto a Venezuela foi o país que mais se afastou (de 20º em 2013 para 102º em 2018). O Brasil também decaiu: de 17º em 2015 foi para 32º em 2019.

Esse ranking é baseado em uma pesquisa mundial feita pelo instituto Gallup, em que as pessoas dão nota de 0 a 10 sobre 14 grandes temas em seus respectivos países. O relatório inclui análises de especialistas de economia, estatística e psicologia.

Já o Índice do Planeta Feliz é feito desde 2006 pela organização New Economics Foundation, sediada em Londres (Reino Unido). Esse indicador inclui a pesquisa Gallup sobre o bem-estar global, além de dados de expectativa de vida e justiça social, mas dá um peso maior para a pegada ecológica de cada país, o que faz com que países em desenvolvimento estejam nos primeiros lugares (Costa Rica, México e Colômbia) em detrimento dos mais industrializados.

Há também o Índice Vida Melhor, organizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), entidade que reúne 37 países. Presente no ranking, Brasil está fora desse grupo, apesar do lobby de Bolsonaro com Trump para a inclusão. Esse indicador, que avalia também o senso comunitário e engajamento cívico, aponta o Brasil na 35ª posição entre 40 países.

Não gosto de misturar indicadores objetivos e subjetivos, mas pesquisas de opinião são complementares e ajudam a apontar tendências. Em 2010, quando o Brasil estava bem economicamente, levantamentos apontavam que havia insatisfação com os serviços públicos e a corrupção. Um ano depois esse cenário ficou claro com os protestos de 2013

Marcelo Neri, economista e diretor da FGV Social (Fundação Getúlio Vargas)

A moral da história

"A economia surgiu como uma ciência moral, mas ao longo do tempo os economistas perderam a moral, em todos os sentidos. As perguntas que a gente deve fazer são: Desenvolver para quem? Para que? Para onde? Minha resposta é para as pessoas terem uma vida de qualidade no planeta."

A afirmação é de Carlos Gadelha, economista e pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), que faz uma ligação direta da atual busca por estatísticas mais humanas a Adam Smith (1723-1790), considerado o pai da economia moderna, cuja primeira obra (e por ele considerada a melhor) se chamava "Teoria dos Sentimentos Morais".

Além de incluir indicadores de sustentabilidade e avaliações subjetivas das pesquisas de opinião, a tendência é que os índices produtivistas, como o PIB, percam sua primazia para outros que calculam o consumo e a renda da população de um país.

"O fluxo da produção é supervalorizado porque é isso que o PIB mede. Mas o que interessa é o fluxo da renda. O problema é que poucos se apropriam dela e fazem força para esconder isso. Outro ponto que está fora do PIB é o estoque, o patrimônio. Aí entram nossos recursos naturais, que não podem ser usados indiscriminadamente, afinal, a natureza tem sua dinâmica própria", afirma Tânia Bacelar, professora emérita de economia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Em décadas passadas, a busca pelo crescimento a qualquer preço gerou uma série de teorias contrárias a ele, como as teses do decrescimento, crescimento zero ou desenvolvimento deseconômico. Agora, o foco está em crescer com equilíbrio social e ambiental. E os novos índices econômicos estão surgindo para balizar essa proposta.

Quando a economia cresce, você tem a chance de fazer as mudanças estruturais, como a mobilidade social. Na estagnação, os projetos ficam trancados. Por isso, não há contradição entre crescer e distribuir, investir saúde e educação e isso gerar renda para o país

Carlos Gadelha, economista e pesquisador da Fiocruz

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