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Bolsonaro pode mudar livros didáticos para evitar "doutrinação"? Entenda

Livros didáticos são avaliados e selecionados de acordo com o PNLD - Júlio César Guimarães/UOL
Livros didáticos são avaliados e selecionados de acordo com o PNLD Imagem: Júlio César Guimarães/UOL

De Ecoa

05/02/2020 04h00

Livros didáticos, Enem, Sisu e ProUni. Estamos apenas em fevereiro, mas é certo que, ao fim de 2020, a educação estará entre os temas mais polêmicos do ano, e isso graças ao contínuo fluxo de equívocos relacionados ao tema - parte considerável deles tendo o governo federal como protagonista. O erro do MEC (Ministério da Educação) na divulgação das notas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) desencadeou uma série de problemas, afetando o Sisu (Sistema de Seleção Unificada) e até o ProUni.

A série de polêmicas, no entanto, teve início ainda antes, com a declaração do presidente Jair Bolsonaro dizendo que os livros didáticos deveriam ser "suavizados", pois tinham "muita coisa escrita". O MEC, então, anunciou um novo edital do PNLD (Plano Nacional dos Livros Didáticos) para acabar com uma possível "doutrinação" das obras usadas atualmente nas escolas públicas.

Mas o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e o presidente Jair Bolsonaro podem mudar os livros didáticos? O que permeia o PNLD e quais são os possíveis rumos para a educação?

Ecoa ouviu as educadoras Roxane Rojo, professora do departamento de linguística aplicada da Unicamp (Universidade de Campinas), e Patrícia Amparo, professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), que defenderam a ideia de que os livros didáticos não são manuais, e que os professores têm autonomia para desenvolver suas aulas a partir de diversas referências.

  • Afinal, o que é um livro didático?

    A gente pode definir o livro didático como material impresso usado como uma ferramenta para o professor ensinar e para os alunos aprenderem. Ele serve tanto em sala de aula, para configurar o conteúdo básico a ser ensinado (que poder ser expandido por outros suportes e mídias), como serve para o aprendizado do aluno fora da escola, por meio de lições e atividades extraclasse. Ele é um instrumento de ensino, não um guia ou um manual.

    "O livro didático não é por si só suficiente para a organização das aulas. Só vai ganhar sentido, só vai ser usado em toda sua potencialidade, se o professor elaborar a dinâmica. É um ponto de referência para os professores. O professor não precisa utilizar o livro exatamente como ele está posto. Ele tem autonomia."
    Patrícia Amparo, professora da Faculdade de Educação da USP

  • Por que, então, há professores que seguem à risca o livro didático?

    O livro didático foi adquirindo, com o tempo, um conjunto de tarefas. Ele organizou a sequência dos assuntos a serem ensinados, de acordo com as séries, além de cumprir o papel de estruturar o currículo para os professores, a administração do tempo e as atividades em sala de aula.

    Como instrumento de ensino, cumpre esse conjunto de papéis no desenvolvimento das aulas e na tarefa de ensinar. Só que além disso, é preciso considerar o livro didático como parte da cultura escolar, o que fez com que, ao longo do tempo, ele fosse adquirindo uma centralidade importante no trabalho da escola.

  • O livro didático é suficiente para o professor dar aula?

    O livro didático não é um material suficiente e único para ser adotado em sala de aula. Ele mesmo indica links de complementação, vídeos na internet, filmes para serem vistos. É um material comum entre professores e alunos para o trabalho central do conteúdo principal que deve ser ensinado numa área ou disciplina. Ele vai ser complementado pela própria aula do professor - mas não é a aula do professor.

    Nada é guia único. Quanto mais diversificada for sua cultura e quanto mais variado e até conflitante forem os textos que você está expondo, mais você aprende.

    "A educação é o contrário de verdade absoluta. Verdade absoluta é fé cega. Eu creio, contra qualquer evidência, nessa verdade absoluta. A educação, para mim, é o exercício da crítica, é o exercício do pensamento divergente, é o exercício de confrontar hipóteses, de buscar resultados. Verdade absoluta em ensino, aprendizagem, não deve existir. E em educação também não deveria, de maneira mais ampla."
    Roxane Rojo, professora do departamento de linguística aplicada da Unicamp."

  • Quando os livros didáticos surgiram no Brasil?

    O primeiro livro didático editado no Brasil e escrito por brasileiros é a Antologia Nacional, criada no século 19. A obra reunia uma série de textos que compunham a literatura portuguesa e brasileira, e eram considerados relevantes, além de algumas poucas perguntas ao final de cada texto. Era uma coletânea de textos para uso de professores e alunos em sala ou fora dela. Já no século 20, com a organização das redes de ensino pelo Estado e do maior controle e organização do sistema de educação, foi adquirindo o formato que a gente conhece hoje. O livro didático de língua portuguesa do Ensino Médio, por exemplo, é composto de introdução, um texto que organiza a atividade, as atividades de ensino, imagens e sugestões de leitura.

  • Como o livro didático sai da editora e vai parar nas mãos do aluno?

    Em 1985, quando o Brasil foi redemocratizado, o governo federal criou o PNLD (Plano Nacional dos Livros Didáticos), que garante a avaliação e a distribuição das obras ao ensino público no Brasil. Para isso, as editoras que produzem os conteúdos concorrem a um edital, e uma equipe de especialistas em cada disciplina avaliam a qualidade das propostas didáticas dos livros.

    Depois da avaliação, as secretarias de educação recebem o guia do livro didático, que contém as obras disponíveis para escolha das escolas. A cada ano, o PNLD avalia uma categoria de livros (obras para ensino fundamental 1, fundamental 2 e ensino médio).

    O PNLD, como é um programa de seleção, avaliação e distribuição, leva, assim que escolhidas, as obras para todas as escolas públicas do território nacional.

  • O governo federal pode mudar os livros didáticos?

    Não diretamente. Mas o governo pode alterar os critérios de avaliação do PNLD. Uma escola particular, por exemplo, pode adotar o livro que ela quiser. No entanto, as escolas públicas só podem usar os livros que são comprados pelo Estado, e essa compra se dá por meio do PNLD.

    Outro indício de que o governo pode influenciar, indiretamente, na mudança dos livros didáticos foi o decreto do presidente Jair Bolsonaro, do último dia 25 de janeiro, que diz que o MEC pode começar a produzir o próprio material didático.

    Apesar de uma possível produção interna de material didático, o PNLD é uma baliza importante para garantir as correções conceituais, éticas e pedagógicas. Levando em consideração que é um instrumento, ele deve ser pensado e escolhido de acordo com as necessidades da escola.

    O próximo ciclo de avaliação do plano, que deve ocorrer em 2021, será realizado para os livros destinados aos alunos do Ensino Fundamental 2 - do 6º ao 9º ano.

  • O livro didático deveria ser "suavizado"?

    Livro, por definição, é um material escrito, embora os livros didáticos apresentem gráficos, diagramas, ilustrações, imagens, links para vídeos, filmes na internet etc. E sendo um livro didático, ele não pode ser "suavizado".

  • O conteúdo dos livros didáticos se altera com o tempo?

    Como o mundo muda constantemente e, ultimamente, de forma acelerada por causa das mídias digitais, o conteúdo dos livros didáticos também precisa se modificar, embora ele tenha que estar sempre atendendo aos currículos e, mais recentemente, à BNCC (Base Nacional Comum Curricular).

    No caso dos livros de Língua Portuguesa, por exemplo, as mudanças ocorrem de acordo com os novos tempos. São novas tecnologias da informação e da comunicação, gêneros e elementos que devem ser abordados pelo professor.

    É por isso que, a cada edição, novos elementos são incluídos. Não é possível usar a cartilha "Caminho Suave", criada em meados de 1940 e que caiu em desuso nos anos 1990.

Fonte: Roxane Rojo, professora do departamento de linguística aplicada da Unicamp (Universidade de Campinas); Patrícia Amparo, professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo); MEC (Ministério da Educação); FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação)