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Opinião

A caminho da COP30, uma parada em uma ilha isolada e cheia de história

Após três semanas de manutenção, com Wilhem se desdobrando no planejamento, em Cape Town, o veleiro Kat voltou a ganhar o mar. Foi a segunda vez que nosso barco esteve ancorado nessa cidade que, para mim, é quase familiar. Conheço a África do Sul desde 1994, de prévias expedições. Essa foi a quarta vez que pisei nesse país. Mas algo mudou desde minhas primeiras visitas: senti as pessoas mais simpáticas, abertas e receptivas. Em Cape Town, percebi uma convivência mais leve e igualitária, com interação entre todos, sem distinção de raça ou gênero.

Para cruzar de Cape Town para Belém, navegando - não em linha reta - serão 5 mil milhas.

Zarpamos de Cape Town sob um céu limpo e mar calmo, com previsão favorável. Foram 12 dias de navegação até Santa Helena, recheados de contrastes: do espetáculo de pores do sol luminosos a dias consecutivos de chuvas torrenciais, tempo nublado, um sol tímido, muito frio e muito balanço. Brinquei com a tripulação dizendo que tinha comprado um "pacote de Atlântico ensolarado", mas que a propaganda fora enganosa - sigo aguardando a resposta do "serviço de atendimento ao cliente" da Expedição Voz dos Oceanos.

Nessa etapa, a bordo do Kat, se juntaram a nós dois voluntários especiais: Katharina Grissoti, oceanógrafa, e Alex Najas, diretor de fotografia. Suas presenças renovaram a energia a bordo e tornaram os turnos mais animados. Foi também durante uma noite estrelada que cruzamos o lendário Meridiano de Greenwich, esse marco invisível que divide o mundo em leste e oeste. Uma emoção que só quem está no leme, sob o silêncio do mar, consegue compreender.

Chegar a Santa Helena é, por si só, uma experiência única. Até 2016, só era possível fazer isso em um navio misto, de carga e passageiros. Hoje, um aeroporto conecta a ilha ao mundo. E há um detalhe que me enche de orgulho: o único avião capaz de pousar e decolar com segurança na ilha é brasileiro. O Embraer E190 se tornou a ponte aérea entre Santa Helena e o resto do planeta.

A pista curta, somada aos ventos fortes e instáveis, inviabilizou aeronaves maiores, como o Boeing 737. O Embraer, com sua combinação de alcance, porte e desempenho, provou ser a solução perfeita. É como se, em meio a esse pedaço remoto do Atlântico, uma bandeira brasileira estivesse sempre presente, cruzando os céus desafiadores da ilha.

Morador ilustre

A primeira impressão da ilha, ao chegar pelo mar, é de surpresa: "quem colocou uma ilha no meio do Atlântico, a 2 mil km da África e a 3 mil km do Brasil"?! Santa Helena compartilha um destino com outras ilhas isoladas, como Robben Island, Ilha do Diabo, Alcatraz e Fernando de Noronha: todas usadas como prisões.

O prisioneiro mais ilustre de Santa Helena foi Napoleão Bonaparte, o imperador que dominara boa parte da Europa. Derrotado em Waterloo, em 1815, os britânicos decidiram enviá-lo para um local de onde não pudesse escapar. Chegou acompanhado por um exército de guardas: cerca de 3 mil soldados britânicos foram destacados para vigiá-lo e evitar qualquer tentativa de resgate. Viveu seus últimos seis anos em Longwood House, uma residência úmida e austera, ditando memórias, escrevendo cartas e refletindo sobre sua trajetória. Morreu em 1821, aos 51 anos.

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Se a ilha é hoje mundialmente conhecida, grande parte se deve a essa página da história. Napoleão transformou Santa Helena em um lugar de interesse histórico e turístico. Sua casa, mantida como museu, recebe visitantes que caminham pelos corredores onde o imperador passou seus últimos dias.

Desafios locais

Santa Helena tem hoje cerca de 4.500 habitantes, fruto de uma mistura de europeus (sobretudo britânicos), africanos e asiáticos (javaneses e chineses). Sua capital, Jamestown, encravada entre montanhas, guarda a famosa escadaria Jacob's Ladder, com 699 degraus. Esse ícone virou palco de competições esportivas internacionais - em 2016, nosso filho Wilhelm e nora Erika participaram e conquistaram o 3º e 2º lugares.

Fiquei feliz de fazer novamente minhas caminhadas por essa cidade, que possui uma rica herança histórica e arquitetônica, com construções do século XVIII que conferem à cidade um distinto sabor inglês. Ela foi fundada pela Companhia Inglesa das Índias Orientais em 1659, que deu o nome em homenagem ao Duque de York.

Dessa vez, conheci Agnes, uma avó muito simpática com sua netinha Lana. Ela me contou que a ilha enfrenta desafios populacionais. A população de Santa Helena está diminuindo, resultado da emigração e da baixa taxa de natalidade. A falta de empregos é um dos principais fatores que levam os chamados Saints a buscarem oportunidades em outros lugares, especialmente no Reino Unido e na África do Sul.

Isso tem causado uma redução da população em idade ativa e um progressivo envelhecimento da comunidade. O filho dela e esposa estão nas Falklands trabalhando, e ela ficou aqui cuidando da neta.

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Um ponto positivo é a consciência ambiental. Eles têm um bom controle de lixo. O sistema de coleta inclui reciclagem, compostagem e incineração de resíduos hospitalares - e estão buscando alternativas para isso. Há ainda programas inovadores, como a distribuição gratuita de recipientes de 25 litros para resíduos de cozinha, que são transformados em adubo para reflorestamento de áreas como o Millennium Forest.

Durante nossos cinco dias em terra, aproveitamos para caminhar, explorar a ilha, respirar sua história e esticar as pernas, depois de tantos dias de mar. Meio como recarregar as baterias em terra sem balançar.

Santa Helena é uma ilha de contrastes: pequena, isolada, mas cheia de vida e de histórias que ecoam pelo mundo.

Agora seguimos para a próxima etapa: a travessia até Fernando de Noronha e, depois, Belém, onde realizaremos a segunda edição da Expedição Voz dos Oceanos, sessões de cinema e visitações ao veleiro Kat gratuitas, dentro da programação da Casa Vozes do Oceano - o epicentro oceânico na COP30.

Mais do que uma rota, é um chamado para continuar levando a mensagem dos mares a todos os cantos do planeta.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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