Confia em mim: novela não é só produto, é um jeito de conversar

Ler resumo da notícia
A televisão, como linguagem, deixou de existir ao menos umas 13 vezes nos últimos anos. E continua aí, sendo o motivo das conversas de padaria logo cedo, e do bar, na hora do almoço. É assunto o tempo todo nas redes sociais. No domingo passado, duas pessoas discutiam na fila do carrinho de sorvete se Maria de Fátima era uma pessoa má de fato ou só uma mistura de ambição e desespero. Perceba o impacto cultural que tem uma novela como "Vale Tudo", que termina hoje.
A gente tem uma mania de achar que só existe um jeito de se caminhar por vez. Se nasceu a TV, o rádio morre. Se nasceram as redes sociais, a TV morre. A IA vai varrer tudo, não haverá espaço para mais nada. Coisa de quem pensa em linha reta, é a nossa herança cartesiana e binária gritando alto. A vida não é isso ou aquilo. A vida é isso e aquilo, façam os seus caminhos. E daí eles se encontram, se reinventam. São as confluências, nas palavras do pensador brasileiro Nego Bispo. Porque tudo é começo, meio e começo, ele defendia. Nisso, o TikTok é como uma televisão em que todo mundo tem seu próprio horário nobre. Demos a volta na casa, saímos no mesmo quintal. Só a paisagem mudou um pouco.
Se estou numa mesa e alguém afirma que "ninguém mais assiste novela no Brasil", eu logo consigo entender o que essa pessoa entende como país: ele próprio, o que as suas amizades mais próximas consomem, as tendências que observa nos cinco quarteirões por onde circula a vida, em uma semana. O Brasil teoriza os Brasis aonde nunca foi.
A gente gosta de histórias, de contar e de ouvir. E é por isso que as novelas seguem tão fascinantes para uma grande parte das pessoas. Eu arriscaria dizer, a maioria. Quem circula por aí, percebe. É que o formato condensa, em linguagem acessível, os conflitos, desejos e contradições, noite depois de noite. São histórias que ajudam a nomear o que dói, o que faz doer. Do quê e de quem sentimos mais ou menos raiva. Por qual motivo. Em 2021, ECOA mostrou até como as novelas influenciaram a solidariedade brasileira.
Sim, é verdade, os tempos são outros. Sim, eu sei, a maior parte da nossa atenção mora nas telinhas agora, não nas telas como era até outro dia. O contexto muda, a gente muda junto. Os impactos mudam de jeito, de tamanho, mas ainda sim seguem sendo impactos. E se eles existem, existe também quem está se relacionando com as histórias contadas.
Feito tudo que influencia a imaginação e o debate público, a novela também é um lugar de disputa simbólica: quem é representado, de que maneira. Quais são os corpos que estão ali, os seus jeitos de se expressar. As décadas de hegemonia de uma televisão branca, urbana e de classe média, feita principalmente por homens do sudeste brasileiro, mostraram o quanto ela também pode reforçar estereótipos, naturalizar violências e invisibilizar experiências e jeitos de estar no mundo.
Poucas pessoas sabem que o maior produtor de uvas brasileiro é Pernambuco. E que, juntos, apenas os estados do Nordeste produzem mais uvas do que todo o Chile, um país mundialmente conhecido por seus vinhos. Quem tem contado essa história? É que muita gente ainda acredita numa versão elaborada, durante décadas e décadas, por olhares de fora, recheados de reducionismo e estereótipos que cristalizaram uma forma única de imaginar a região, ancorada na escassez. É este o poder de uma novela, de um filme, da televisão: construir jeitos de se imaginar. Para o bem e para o mal.
Produções recentes, especialmente feitas por realizadoras de periferias e favelas brasileiras e por pessoas não brancas, junto a uma reorganização do debate público, vêm tensionando essa monocultura de personagens, perspectivas e histórias. Todos têm o direito de contar. Andamos uns três passos, agora só falta todo o restante do caminho. Antes tarde do que mais tarde.
E em tempo: vá ao cinema assistir a família Pitanga e grande elenco no filme brasileiro "Malês".





























Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.