Com a linguagem do futebol, HQ 'Impedimento' dribla o tabu do aborto

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Na linguagem dos boleiros, a história em quadrinhos "Impedimento", lançada no último sábado no Museu do Futebol, em São Paulo, é aquela jogada ensaiada pelas laterais do campo. Se a frente da área tem gente demais e não se escuta de verdade quem fala o quê, porque tem muita gente gritando para tumultuar o entendimento, é preciso estratégia, trabalhar pelas beiradas. Foi o que três ativistas fizeram.
Escrita pela brasileira Gabi Juns, a argentina Jazmin Luzzi e a mexicana Lucila Sandoval, a história, publicada por aqui pela Bebel Books, usa o futebol como pano de fundo para atravessar conversas responsáveis sobre aborto, autonomia e direitos reprodutivos no caminho de quem quase nunca pode ou quer falar sobre os temas. Especialmente os meninos, especialmente os mais jovens. A HQ pode ser encontrada no site da editora.
"A ideia de ser um jogador de futebol habita o imaginário dos nossos meninos e homens. Um jogador no auge da carreira é um lugar quentinho para que muitas pessoas consigam calçar os sapatos do Santiago e caminhar com ele nessa história", explica Gabi.
A roteirista, que tem participado de mesas para lançar o trabalho, defende que o convite da HQ é para que essa conversa não fique apenas entre as mulheres. Com a publicação, elas querem alcançar lugares em que estes debates normalmente nem chegariam. "Nós precisamos muito conversar com homens cisgênero mais jovens sobre como o aborto é uma questão de saúde pública. Tirar o assunto deste lugar de tabu", defende.
Trabalhando com a ficção especulativa, o trio de roteiristas criou um mundo em que homens cisgênero podem engravidar. Foi o que aconteceu com Santi, craque do seu time e da seleção, às vésperas de uma Copa do Mundo. A partir daquele momento, como aparece na sinopse, Santi vai perceber como a decisão sobre seu corpo não está mais em suas mãos: seu médico, sua família, seu treinador e até mesmo os legisladores têm suas próprias opiniões.
"É como se no momento em que eu fico grávida, o meu corpo passa a pertencer à sociedade, às igrejas, ao Estado. E isso não é uma ficção", aponta Gabi, traçando paralelos entre a HQ e a realidade.
Nesta entrevista, ela explica as escolhas pelo futebol como universo onde a história se desenrola e a HQ como uma linguagem para construir o enredo de modo didático e acessível para todas as pessoas. No papo, Gabi também defende que o ativismo precisa inventar jeitos de conversar o que é urgente e necessário com a sociedade, num momento em que as estratégias tradicionais parecem não fazer mais tanto efeito.
Em 2019, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que, se homem engravidasse, o debate sobre o aborto já estaria resolvido há muito tempo. "Impedimento" nasceu um pouco desta declaração?
A frase do ministro Barroso, uma frase muito dita em comentários na internet, foi disparadora por nos parecer uma imaginação muito comum na sociedade. A ficção nos dá a oportunidade de explorar essa especulação. A criminalização do aborto faz vítimas todos os dias, do ponto de vista da penalização das pessoas e da estigmatização - que acaba tendo consequências gravíssimas.
Segundo estudo recentemente publicado pela Anis - Instituto de Bioética, entre 2012 e 2022, quatro em cada cinco mulheres denunciadas por aborto sofreram alguma consequência penal, e a maioria sequer havia sido julgada quando foi presa. Colocar uma prática no cantinho do "é crime" faz com que tudo ao redor dele fique estigmatizado.
A partir daí, há uma interrupção do debate. Quais são as consequências deste impedimento?
Se não estamos falando deste tema dentro das nossas casas, como estamos nos educando? Como estamos cuidando, principalmente, das nossas crianças, em um país em que os índices de estupro só aumentam entre meninas de 10 a 14 anos e ocorrem dentro de casa, realizado pelos homens da própria família?
A estigmatização da conversa faz com que pessoas passando por aborto espontâneo sejam maltratadas em hospitais, faz com que meninas morram por terem ficado grávidas, como é o caso recente de Dorca. E as principais vítimas disso são meninas não-brancas, negras e indígenas, como Dorca.
Vocês escolheram o universo do futebol e a linguagem dos quadrinhos. Como foi isso?
Tanto os quadrinhos quanto o futebol têm um público masculino maior do que feminino, que é com quem queremos conversar sobre o tema. Além disso, ambos têm razões narrativas. Os quadrinhos nos dão a oportunidade de traduzir em imagens ideias que são impossíveis na vida real, a ilustração permite tudo. E o formato deixa muito espaço para a imaginação: os quadrinhos são uma espécie de resumo de uma cena, mas quem cria ela, preenche com movimento e diálogo, somos nós, que estamos lendo. O futebol é paixão nacional nos países das três autoras: Brasil, Argentina e México. É importante tratar de algo que parece nos dividir a partir do que nos une.
"Impedimento" é uma aposta de que não podemos desistir da conversa, mesmo quando são sobre temas tão polarizados como esse?
Eu acredito no poder da conversa, que nem sempre é sobre estar certo ou errado, é sobre ouvir e falar, principalmente ouvir. Acho que a barreira em temas tão polarizados pode ser quebrada quando conversamos sobre o que nos importa e sobre o que é comum.
Como assim?
Por exemplo, podemos começar uma conversa a partir do desejo de decidir quando e como formar minha família. Ou sobre o medo da gravidez indesejada. Ou a valorização que damos à vida, a ponto de não admitir tantas mortes maternas por falta de atenção básica, fundamentalismo religioso ou ignorância dos profissionais de saúde. Acredito em olhar para o que nos une e construir a ponte de diálogo a partir disso. O cristianismo, que alguns vêem como um grande inimigo da descriminalização do aborto, acredita em acolher as pessoas em qualquer situação, e não chamar a polícia para uma pessoa que está passando por um abortamento. Nós podemos criar as pontes.
O ativismo precisa encontrar novos jeitos de conversar com as pessoas, em meio a tanta polarização e cansaço pelo excesso de informação?
Informação é muito importante, mas a nossa vida não é dividida em caixinhas. Os nossos valores se manifestam em tudo o que fazemos e consumimos. Mesmo que a gente não perceba, tudo está conversando com nossos valores e construindo quem somos, a música, o cinema, os gibis, o reality show. Então, como ativistas, por que estamos só olhando para o noticiário?
Disputar o entretenimento, trabalhando com outras linguagens como vocês estão fazendo, é um caminho?
Se a gente olhar para trás e pensar na programação de TV dos anos 1990, vamos perceber como o entretenimento estava ali fazendo um tipo de papel de ativismo de inferiorização das mulheres, objetificando-as. E colocando homossexuais e pessoas trans em um lugar estereotipado também. E neste momento em que nos percebemos tão cansados e tudo o que a gente quer é entretenimento, que ele seja de qualidade e construtivo. Para isso, precisamos nos envolver.
O ministro Barroso, que inspirou "Impedimento", saiu da presidência do STF afirmando que o Brasil ainda não está pronto para julgar o tema. Você acredita nisso?
A decisão sobre a descriminalização do aborto não pode continuar sendo adiada sob o argumento de que "a sociedade ainda não está pronta". A Corte tem o dever de compatibilizar a legislação penal com os preceitos constitucionais da dignidade, igualdade, autonomia e direitos reprodutivos. E Barroso está enganado sobre a opinião pública. Um levantamento recente do Instituto Update com a Idea Big Data mostra que 72% das mulheres brasileiras rejeitam a prisão para quem realiza aborto fora das exceções legais. Pautar a descriminalização do aborto é, sobretudo, um ato de coragem institucional. Coragem para sair da paralisia e fazer o que é certo, pela Constituição. Coragem para ouvir as brasileiras, que se dizem prontas para essa mudança. Coragem para, enfim, começar a sanar essa dívida democrática do Estado brasileiro com todas as pessoas que gestam.




























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