Tony Marlon

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Opinião

Nomear a manipulação é desfazer o truque dos novos autoritários

A maneira como as democracias nascem é bem parecida, foi o que eu aprendi até agora. Há sinais, como a pressão popular, e rituais, como as celebrações pelas ruas, perceptíveis e reconhecíveis aos olhos do mundo. Nos dias de hoje, o confuso mesmo é saber o exato momento em que elas se vão.

A estratégia de corroer o Estado de dentro para fora faz a linha entre um dia fazermos parte do jogo e no outro ser apenas a sua plateia algo tênue e borrado.

Se antes eram os decretos escancarados que restringiam direitos em massa e um desfile de tanques na rua, as estéticas mundialmente reconhecidas para um adeus às liberdades individuais e coletivas, à concentração de poder e a banalização das violências contra a própria sociedade, hoje é tão aos poucos que boa parte de nós ainda chama de crise o que na verdade é uma coleção de pequenas rupturas que constroem uma ruptura maior. E definitiva.

Me lembra uma história que escutava quando criança, em que o sapo não sabe que está sendo fervido até que chega um momento em que já é tarde demais. Nós somos os sapos.

Os autoritários contemporâneos não precisam necessariamente de romper as regras de maneira brusca, à luz do dia, basta manipulá-las aparelhando as instituições e normalizando abusos. Fazem isso testando diariamente os limites públicos. Mais dia, menos dia, aquela sociedade amanhece diferente de quem sempre foi. Temos uma chance de assistir isso ao vivo, bem perto de nós.

Nos movimentos sociais chama-se de sucateamento o ato consciente de um governante de deixar um serviço público falhar até o seu limite para justificar uma privatização, que sempre vem logo depois. Talvez o paralelo funcione. Há em um curso no mundo um sucateamento da esperança política. Se nada muda, se todos parecem corruptos, se as instituições falham sempre, instala-se a sensação de que resistir é algo perto do inútil. Não é verdade.

É nesse vazio intencional que o autoritarismo aparece como promessa de restauração da ordem, eficiência e meritocracia. O mesmo movimento que entrega escolas a conglomerados privados também entrega a democracia a tecnocratas ou a líderes de palavras fortes, que gritam sobre "cortar privilégios", enquanto concentram poder. Corremos o risco de assistir isso ao vivo, bem perto de nós.

Este é o momento em que nasce em parte das pessoas uma crença de que importa pouco como o jogo é jogado, desde que eu, minha família e minhas amizades mais próximas estejamos vencendo.

Não é verdade, viver é um exercício coletivo. E o Emicida já cantou essa bola em Boa Esperança: "A violência se adapta, um dia ela volta pro 'cêis". No autoritarismo, os únicos que estão seguros são os autoritários que estão na hora certa, no lugar certo.

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No último domingo, milhares de pessoas foram às ruas para exercitar o músculo da esperança, um outro nome para as manifestações que aconteceram do norte ao sul do Brasil contra absurdos como a "PEC da Bandidagem". Contra os políticos muitas vezes profissionais, com tradição familiar de cargos que passam de pai para filho, buscando serem ainda mais inalcançáveis à justiça.

A manifestação, nesse sentido, é uma espécie de ritual de lembrança. Lembra que democracia não é apenas urna de dois em dois anos, mas também vigilância, ocupação de espaço público e pressão constante. É um músculo porque precisa ser exercitado, senão atrofia.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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