Tony Marlon

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Opinião

Na periferia de SP, 'moeda literária' muda relação de crianças e livros

Uma vez ao ano, a Praça do Campo Limpo, na periferia da zona sul de São Paulo, recebe centenas de pessoas que amam e vivem do livro e da literatura. Em 2015, logo na primeira edição, mais de 3 mil pessoas apareceram na Feira Literatura da Zona Sul (FELIZS) e, a cada ano, o público só aumenta.

Quem afirma com todas as letras que o Brasil não faz muito para apaixonar pessoas e histórias nem deve conhecer direito o que os brasis têm feito, a partir de movimentos culturais periféricos como esse.

Montada num espaço público, literalmente no caminho de quem vai e volta para casa, a FELIZS nasceu do coletivo Sarau do Binho uma década atrás para ser um lugar que celebra a palavra escrita e falada a partir das bordas da cidade.

Sua existência e insistência - conseguir recursos para tirar este sonho do papel é sempre uma dificuldade inexplicável a cada edição - é um recado: cidadania cultural é igual feijão com arroz, necessidade básica de toda e qualquer pessoa. Deveria vir na cesta básica, mas ainda não é prioridade nem do debate político. Menos ainda dos seus investimentos.

Uma conta que vale a pena

Durante aquele um dia de encontro tem de tudo: palestras, performances, rodas de conversa e shows musicais. De graça, numa praça pública. Se tem palavra, está na FELIZS. Acontece que, ao longo do tempo, aquela reunião de tantas e tantas pessoas, editoras independentes e de quem escreve, ficou pequena para os sonhos do grupo. E é aí que começa o capítulo que me encanta ainda mais, que fez essa coluna vir ao mundo.

De apenas um dia, a feira foi sendo transformada em um movimento de semanas, espalhadas pela zona sul. Como uma espécie de aquecimento para o evento, ali, na praça, a conversa sobre livro e literatura, sobre a imaginação como direito humano, entrou nas bibliotecas e escolas da região.

A palavra, e tudo que nasce ao seu redor, ganhou o centro das atenções e das atividades de crianças, adolescentes e das juventudes. A FELIZS virou uma jornada, em que o encerramento é o dia em que todas se encontram para celebrar. E, nesse dia, cada criança e adolescente desembarca dos ônibus com suas escolas já com uma moeda literária guardadinha no bolso. As professoras também.

Na FELIZS, cada criança recebe uma moeda que é aceita por todas as pessoas e editoras participantes do encontro
Na FELIZS, cada criança recebe uma moeda que é aceita por todas as pessoas e editoras participantes do encontro Imagem: Suzi Soares

"A gente via as crianças no dia do encerramento, andando pela praça, visitando as barracas das editoras, folheando os livros, mas elas não necessariamente podiam comprar o que estavam vendo", explica Suzi Soares, produtora e curadora da FELIZS. "Foi aí que em 2018, o Binho teve essa ideia de criar uma moeda literária".

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Na prática, explica Suzi, cada criança recebe uma moeda que é aceita por todas as pessoas e editoras participantes do encontro. Se a criança gostar de qualquer livro de feira, ela pode levar para casa. É sobre o direito ao acesso ao livro também, mas não é só isso, ela defende. Para Suzi, a moeda é uma ferramenta pedagógica e política.

"A gente acredita que é muito importante que a criança tenha a opção da escolha. Que ela possa ter assegurado o direito de olhar a capa, folhear, conversar com o autor e, a partir disso, entender se vai ou não comprar".

Há anos construindo movimentos como este, que colocam a cultura como direito de todas as pessoas de uma cidade desigual feito São Paulo, Suzi também vê na moeda uma estratégia para estimular a geração de renda.

"E tem a questão da economia criativa, né? De fazer com que a moeda circule e que as editoras possam vender. A gente vai a muitas feiras de livro por aí em que autores e editores ficam ali o dia inteiro e não vendem um livro sequer", observa.

É preciso financiamento (e você pode ajudar)

Suzi destaca que mesmo mobilizando até quinze ônibus com crianças e adolescentes por ano e inúmeras atividades nas escolas da região, a moeda literária enfrenta um desafio comum para quem trabalha com cultura nas periferias e favelas brasileiras: conseguir ser financeiramente viável.

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Este ano, mais uma vez, a FELIZS botou no ar uma campanha de financiamento coletivo. Elas precisam de R$ 25 mil para tirar a ideia do papel. Esse é valor o mínimo, só para fazer a ideia rodar dentro da FELIZS. A produtora explica que, neste ano, elas pensaram realmente em desistir.

"Temos muita dificuldade em acessar recursos. Às vezes a gente consegue um apoio num ano, no outro a gente perde. Aí é correr atrás de mais alguém. É uma eterna luta para fazer acontecer", finaliza Suzi.

Tradicionalmente realizada em setembro, o tema de 2025 é "Memória e Resistência - A luta não é pra hoje, é pra sempre" e homenageia Ana Dias, viúva de Santo Dias, operário morto pela Ditadura Militar brasileira.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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