Pepe Mujica: uma vida entre a denúncia e o anúncio

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No livro "Políticas do encanto: extrema-direita e fantasias da conspiração", o estudioso em semiótica Paolo Demuru defende que "não adianta enfrentar os encantos do extremismo de direita apenas com fatos, dados e raciocínio". Para mudar a realidade, defende ele, "precisamos mudar os trilhos da imaginação social, reconquistar a fantasia, inventar e semear histórias".
O ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica, que nos deixou esta semana, é quem melhor parece ter entendido essa ideia em nosso tempo. Ao menos no campo progressista. Abriu mão das narrativas, se abraçou a uma narração do mundo que deseja construir.
Preso político por 12 anos, pulando de prisão em prisão, na maior parte do tempo em solitárias, ou seja, sem nenhuma interação com outras pessoas, Pepe experienciou tudo que pode levar à deterioração do espírito humano: perder todos os dentes por falta das mínimas condições de higiene, comer sabão para sobreviver, beber a própria urina para matar a sede.
Durante todo esse tempo, Mujica contou algumas vezes, foi preciso recorrer ao que estava além do que seus olhos viam, do que o seu corpo conseguiria alcançar. Não foi à realidade, dura e cheia de desesperança, que ele se agarrou, mas a sua capacidade de contar outras histórias a si mesmo, sobre si mesmo e sobre o mundo.
Disso, Pepe virou quem virou. Primeiro deputado, depois, senador, ministro da Agricultura e enfim presidente da república. Agora, ele é uma ideia: alguém que sabia conversar com as pessoas — não apenas nomear as suas dores, as suas ausências, as suas necessidades. Alguém que sabia que informar importa muito, narrar importa igual. E narrava em comícios, coletivas de imprensa, rodas de conversa e em todo espaço que tinha: a denúncia e o anúncio.
Feito poucos, Mujica sintetizou futuros desejáveis usando conceitos universais, facilmente reconhecível mesmo entre culturas diferentes: "Quando você vai comprar algo, não paga com dinheiro, paga com um tempo de sua vida que teve que gastar para ter esse dinheiro."
Certa vez, numa visita ao Japão, precisou parar na metade do caminho pois se ajuntava perto de sua comitiva um grupo de jovens gritando o seu nome, com cartazes e fotos. Foi lá oferecer um aceno. Mujica não mobilizava atenção e interesse por onde passava por ser um político diferente, mas por ser um humano diferente, ocupando a política.
Não foram poucos o políticos brasileiros que, ao saberem de sua morte, correram para fazer homenagens nas redes sociais. Se corressem para abrir mão dos privilégios que os distanciam de quem dizem representar, soariam menos hipócritas, minimamente mais verdadeiros.
Por que ao fim de tudo, o recado político que Mujica deu ao mundo, sendo quem foi, era um só: política não é profissão. Não há como se pensar representante de um povo, se você se entende como superior a ele.
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