Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Clarissa Borges: bordar memórias transforma dor em arte e denúncia

Até outro dia, eu não sabia que arpilheira é uma técnica de bordado que anuncia e denuncia as injustiças do mundo. É aquilo: tudo que a gente faz é política. E o que escolhemos não fazer, também.

A arpilheira apareceu com mais força no Chile da Ditadura Militar (1973-1990), nas mãos de mulheres do campo e das periferias que guardaram em sacos de farinha, açúcar e batatas, os horrores que passavam. Costurar como arte sua leitura crítica do que acontecia ajudava a não naturalizar o absurdo. E a não esquecer. É 2025 e estamos falando desses horrores. E delas.

O filme brasileiro "Arpilleras: atingidas por barragens bordando a resistência" (Arpilleras: atingidas por barragens bordando a resistência ) é uma boa maneira de entender o papel deste tipo de bordado. Lançada em 2019, a produção acompanha dez mulheres atingidas por barragens nas cincos regiões do país. Enquanto bordam a dor que sentem até hoje ao perderem suas casas e famílias, denunciam a seletiva justiça verde amarela. O Brasil nunca erra quem vai esquecer primeiro.

Um jeito próprio de bordar

Mestra em psicologia social pela Universidade de São Paulo, Clarissa Borges foi quem me convidou a olhar o bordado para além do seu valor estético, que tem e é muito. Sua técnica hoje é a do ponto livre, que é autoexplicativa. Só o caminho que Clarissa fez até entender que, sim, ela sabia fazer aquilo, já mostra que bordar é sobre o que você coloca para fora. Mas é também sobre o que você cria para dentro.

"Eu bordava ponto cruz, que é aquele ponto dos xizinhos. Você pega uma revista que tem o desenho e vai copiando. Fazia coisas grandes, bonitas, mas me sentia limitada", diz. Tem gente que não cabe, mesmo, dentro das molduras que foram criadas. Um dia, ela até lembra a data, no aniversário da mãe, mergulhou numa técnica mais solta. Mais livre. Decidiu ir a um curso. Deu medo, mas ela foi. Tem horas que só assim.

"Eu desenhava muito quando era criança e fiquei naquela coisa de fazer boneco palito. Olhava para ele e pensava: não quero bordar isso". A gente vai crescendo, ela diz, e assimilando o que outros dizem de nós, do que a gente faz, de quem a gente é. Aí um dia a gente se esquece. No desafio que se colocou de aprender o ponto livre, Clarissa descobriu que o seu desenho de palito é bonito, sim. Que ela sabe desenhar, sim. Do seu jeito.

"Essa técnica, o bordado livre, acabou se tornando algo muito transformador para mim. No sentido de perceber que, sim, eu posso desenhar. Tenho bordados que são bonecos de palito, e está tudo bem", ela diz. Entenda o tamanho dessa frase. Para a artista Clarissa, não é só o que está ali, no tecido. É o que aquilo conta. O que aquilo faz sentir. "O bordado tem sido esse processo de reencontro com o ato de desenhar, que eu tinha perdido. De cura."

Para outras mulheres

Bordado vai, bordado vem, Clarissa encontrou numa técnica que é diferente da arpilheira, do começo da história, um poder parecido. Aquele de costurar num tecido o que você sente e percebe do mundo. Muitas vezes, aquilo que a gente nem consegue dizer em voz alta. Seja por falta de vocabulário ou de coragem. Tudo começou no Residencial Jardim Bassoli, na periferia de Campinas.

Continua após a publicidade

"Meu trabalho era escutar aquelas pessoas, em sua maioria, mulheres. Suas vidas se transformaram quando precisaram sair de suas casas e ir para um lugar novo. Um lugar em que elas não tinham vínculos afetivos, nem memórias". Longe 23 quilômetros do centro de Campinas, o residencial passou a ser a nova casa de mais de 2300 famílias. Sem muitas linhas de ônibus, longe de tudo que precisavam. As moradias do residencial foram entregues entre 2013 e 2014.

Já no mestrado, Clarissa fez entrevistas com aquelas mulheres que havia conhecido lá atrás. De quem nunca mais se desconectou. Decidiu bordar as frases que anotou daquelas conversas, e anotou muitas. E foi assim que nasceu a sua coleção que celebra as mulheres e memórias do Jardim Bassoli. Para ela, esse é um dos poderes do bordado. O de esticar o tempo e a lembrança, de não deixar quem mais precisa ser lembrado pelo caminho. No último parágrafo da dissertação, registrou assim:

"Das muitas alegrias que esse período de intensa convivência me trouxe, há o reencontro com o bordado e a possibilidade de usar essa paixão também como ferramenta de conexão (comigo e com outras pessoas) e de luta. Este projeto de pesquisa teve outros frutos materiais além da dissertação. Produzi três bordados a partir de imagens do Jardim Bassoli, fotografias de atividades realizadas no residencial, durante o projeto Escola de Transformação e pelo Coletivo Bassoli dos Nossos Sonhos. Junto às imagens, inseri trechos de depoimentos coletados durante as entrevistas."

Clarissa bordou as frases que ouviu de mulheres no Residencial Jardim Bassoli
Clarissa bordou as frases que ouviu de mulheres no Residencial Jardim Bassoli Imagem: Arquivo pessoal

Gostou tanto do resultado que repetiu a dose algumas vezes depois daquele momento. Em uma delas, na Vila Margarida, em São Vicente, na Baixada Santista, abriu uma roda com mulheres da região. Na atividade, cada uma contou sua história e bordou algo significativo. Alguns usavam desenhos prontos, mas sempre escolhendo alguma coisa com sentido muito pessoal. Muitas crianças participaram. Clarissa lembra que foi emocionante, que foi importante demais.

"Um menininho se sentou do lado da mãe e pediu para participar. O bordado tem essa conexão intergeracional: interessa a quem já sabe costurar e a crianças curiosas para aprender", conta Clarissa, quase terminando. Faltava isso aqui:

Continua após a publicidade

"O importante não era o bordado ficar esteticamente bonito, mas guardar algo significativo para elas. Muitas não terminaram na hora, mas depois mandaram fotos dizendo que finalizaram e pedindo mais encontros", diz.

Você sabe que a sua aula foi boa quando as pessoas levam o que não acabaram para casa. Você sabe que não foi apenas mais uma aula quando as pessoas sonham que ela nunca tivesse terminado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.