Tony Marlon

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Opinião

Fala de Gerson, do Fla, sobre privilégio mostra o poder cultural do futebol

Uma resposta de Gerson, jogador do Flamengo, que viralizou nas redes sociais depois da final da Supercopa masculina no último domingo, mostra o poder cultural de um jogador de futebol no Brasil. Ao final da partida contra o Botafogo, o capitão rubro-negro foi perguntado sobre a pressão de se jogar num clube tão grande, e respondeu:

"Para mim, pressão zero. Privilégio. Pressão eu tinha quando era mais novo, sabia que minha família depositava toda as fichas em mim e eu era o único que podia mudar a vida deles". O seu vídeo ganhou rapidamente as redes, as conversas e os grupos do WhatsApp. Inclusive de quem nem acompanha o futebol masculino. Gerson tem 27 anos.

"Pressão tem é um pai de família que acorda 3h da manhã para ir trabalhar, tendo a responsabilidade de trazer o alimento para casa, às vezes de pagar o aluguel. Você já começa o mês devendo, né? Essas são as pessoas que têm pressão". O Flamengo, clube de trabalho e do seu coração, conta com 19% da torcida nacional. Cerca de 40 milhões de pessoas. Do tamanho do Canadá, duas vezes a população do Chile. É muita gente.

O campo progressista vem perdendo a capacidade de se comunicar, justamente, com quem fica feliz toda vez que o camisa 8 do Flamengo joga muito. Como jogou, mais uma vez. Não sou eu quem diz isso, são as pesquisas. E mesmo assim, segue dando pouco ou nenhum valor ao futebol como plataforma educativa. Consciente e poderosa, a resposta de Gerson fez muitas conversas importantes acontecerem. É sobre isso.

"O futebol sempre foi um instrumento poderoso de comunicação aqui no país. E isso tanto por parte do Estado quanto do povo", explica o jornalista e pesquisador Renato Rogenski. Apaixonado pelo Corinthians e por tudo que envolve o jogo, Rogenski é, ao lado de Luís Henrique Moreira, criador do podcast O Futebol Explica o Mundo. Eles querem justamente isso: construir paralelos entre o que acontece dentro das quatro linhas e as nossas vidas. E há muitos.

"Na época da ditadura, o futebol foi utilizado como instrumento de alienação em alguns momentos, servindo de plataforma para a construção da identidade nacional. Por outro lado, os movimentos políticos também já usaram esse esporte em defesa da democracia, na luta contra o preconceito ou em favor dos grupos minorizados", explica. Difícil encontrar quem nunca tenha escutado falar da Democracia Corintiana, para ficar em um exemplo.

Em geral, o futebol é olhado de longe, como se fosse intelectualmente menor. Sei não, estão perdendo uma boa chance de conversar com as pessoas a partir dele. Um clássico em um dos estádios-arena explica sobre a organização de classes sociais brasileiras tanto quanto um textão na internet. Quem costuma ir aos jogos sabe disso. Faz muito tempo, mas não me esqueço como a UNICEF entendeu o poder e a linguagem do futebol.

Era 2013 e um relatório apontava que uma a cada três crianças de até 5 anos não era registrada. Para convidar as famílias, a campanha foi assim: durante os minutos iniciais do jogo, quem narrava dizia apenas o número da camisa de quem encostava na bola. O que provocou um estranhamento, especialmente em quem acompanha jogos pelo rádio. Depois de algum tempo, a mensagem reforçava a importância de todas as pessoas terem um nome registrado. E o que acontece ao mundo quando isso não é garantido. Uma pena não ter encontrado um exemplo desta campanha.

Admiro o trabalho do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e do podcast Futebol Explica o Mundo, entre outras iniciativas, justamente por reconhecer que elas estão fazendo algo necessário e urgente ao nosso tempo: trançar as conversas que realmente importam com os assuntos que interessam às pessoas. O Rogenski disse e eu concordo: "O futebol é uma expressão cultural, social e comunicacional viva do povo brasileiro". Ignorar isso é não entender com quem se quer, e precisa, conversar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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