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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como o entretenimento muda o mundo? Família Dinossauro mostrou nos anos 90

Família Dinossauro - Reprodução/ Disney
Família Dinossauro Imagem: Reprodução/ Disney

Colunista do UOL

12/08/2022 06h00

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Em outubro de 1994 foi ao ar o episódio final de uma das séries de maior sucesso da TV brasileira. Criança, eu não entendia bem o porquê dormi tão apavorado naquela noite lembrando cada segundo da história que me deu outro jeito de ver a extinção dos dinossauros. A insônia nasceu ali.

Em "Mudando a natureza", episódio que mostra a construção de fábricas num pântano, seguida de uma série de decisões interesseiras e erradas de governo e grandes corporações, acontece um desequilíbrio tão grande na natureza que leva a sociedade ao colapso ambiental. Parece familiar? A última cena é uma previsão do tempo da DNN, enquanto tudo se acaba do lado de fora da janela: "Neve contínua, escuridão e frio extremo. Aqui é Howard Handupme. Boa noite. E adeus". Aos 8 anos, duvido você dormir bem depois disso.

A Família Dinossauro foi um programa infantil que fez sucesso ao redor do mundo no começo dos anos 1990. Colorida, bem-humorada, era cheia de bordões que ainda estão por aí até hoje e bonecos que se mexiam de um jeito fascinante para as crianças. O dia a dia da família Silva Sauro entrou nas casas brasileiras falando de xenofobia, machismo, objetificação das mulheres, direitos de povos originários. Drogas. Era tão ácido quanto leve e sutil.

Tanto que os adultos da época lembram do Baby, o caçula mimado, dizendo sem parar 'não é a mamãe", enquanto algumas ex-crianças feito eu escrevem três décadas depois para se perguntar: Lançado hoje, do que chamariam um programa tão profundamente crítico assim?

"Não seja um desses sabichões ambientalistas. Estão sempre no caminho do progresso"

Dino é o patriarca. Operário numa empresa que derruba árvores para construir casas, ele busca de todas as maneiras cuidar da família enquanto desvia da tirania do chefe, o senhor Richfield. É do patrão a frase aí de cima, quando tudo começa a desandar no episódio final. Richfield celebra que as mudanças bruscas de temperatura farão as vendas aumentarem, terão o melhor trimestre da história. No caso, o último, diz um Dino já arrependido em ir pelo senso comum.

Quando as coisas apertam e algo está para se transformado, Dino recorre à tradição ou ao senso comum- as coisas sempre foram assim, não é hora de mudar. É o que acontece quando Charlene, sua filha mais nova, luta para ser tratada da mesma maneira que os dinossauros machos no trabalho do pai. Completam a família, Bob, o filho que questiona todas as crenças daquela sociedade - em um dos episódios ele se declara herbívoro e se recusa a comer animais. Fran, quem realmente faz as coisas acontecerem na casa, quem resolve tudo quando a urgência bate, mas é o tempo todo colocada apenas como a dona de casa e mãe. E a Vovó Zilda, mãe da Fran. Além do Baby.

Zilda, aliás, é a protagonista de outro episódio que me marcou muito. Na história, ao alcançar os 72 anos, os dinossauros são jogados do penhasco em um ritual de despedida da vida. Uma metáfora para a maneira como as sociedades lidam com o envelhecimento e os mais velhos. Bob, que herdou a tarefa, se recusa. Defende que essa tradição não faz qualquer sentido e precisa acabar. Observe a profundidade dessa conversa num almoço de domingo da tradicional família brasileira. E eu achando que era só engraçado, aprendendo tanta coisa importante para o futuro.

Dino Silva Sauro era o patriarca da família  - Reprodução/ Disney - Reprodução/ Disney
Dino e Baby
Imagem: Reprodução/ Disney

"Sua opinião nada patriótica, negativa, de esquerda e idiota"

Eu não lembrava de alguns episódios, mas são o puro suco do nosso tempo. Feito o que tem essa frase. Ela aparece na boca do Dino como uma crítica à Mônica, amiga da Fran. A conversa é sobre uma crise econômica que jogou muitos dinossauros no desemprego. Dino discorda. Para ele, é dever de todo cidadão pensar positivo e ignorar o que dizem quem só quer prejudicar o governo. Se sai com essa:

"De acordo com o Sábio Ancião, os tempos só são ruins se pensamos que eles são ruins". No desenrolar da história, decidem construir um muro para manter os quadrúpedes longe. Atribuem a eles a culpa pela crise, segundo o ancião: "Eles minam os valores das nossas famílias com seus pescoços compridos e provocativos. Eles gastam nossas estradas com suas patas fartas e exageradas. Não me perguntem como, mas foi isso". Lembra algum fenômeno social?

A essa altura, imagino, você já está ao menos curiosa para conhecer ou reassistir esse clássico. Mas eu não saio dessa conversa sem escrever sobre a Mônica. Uma apatossauro, a melhor amiga de Fran não desperta a simpatia dos dinossauros machos por um motivo: ela questiona todos os privilégios que eles têm em relação às fêmeas. Livre, independente e sem medo de dar opiniões, Mônica encoraja Charlene e Fran a lutar por seus direitos. É ao redor dela que acontecem as histórias mais complexas e profundas.

No episódio "O que Harris Sexual quis dizer?", por exemplo, Mônica passa a trabalhar na empresa de Dino e, ao recusar as investidas de um supervisor, é demitida. Ela processa a firma e o que vemos depois é um retrato de como a cultura machista orienta o sistema de justiça, colocando sempre sob dúvida a palavra, o comportamento e as atitudes das mulheres que denunciam. A cena do tribunal, em que o advogado da empresa questiona roupas e maquiagens de Mônica, é didática. Tristemente didática.

Agora, de novo, para relembrar: estamos falando de um programa infantil, sobre uma família de dinossauros, produzido no começo dos anos 1990 e que chegou a passar aos domingos. Colado no Domingão do Faustão. Imaginou?