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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Artista pernambucana usa sacolas plásticas para bordar aves ameaçadas

A artista Raphaelle Brito - Divulgação
A artista Raphaelle Brito Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

29/07/2022 06h00

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"Às vezes, a vida útil de uma sacola é o tempo da gente chegar em casa com as compras", explica Raphaelle Brito. "Depois fica aí, rodando na natureza por uns 400 anos". Ou, por 16 gerações. É muito tempo. A cabeça de artista plástica e o coração preocupado com a natureza levaram a moradora de Bezerros, no agreste pernambucano, a transformar em arte o que geralmente vira lixo e poluição.

"As técnicas da Bordado de Plástico são as mesmas do tradicional. Nossa diferença é o suporte que não é um paninho, mas uma base dura, perfurada. E a matéria prima, que é a sacolinha", detalha.

Tudo começou como as coisas geralmente começam, sem a gente saber muito. Ela conta que estava em casa, no auge da pandemia, tentando movimentar a criatividade. Em uma das obras, o que foi encontrando pelo caminho virou matéria prima: barbante, cascas de cebola para tingir barbantes de embalagens de ovos, pedaço de varal e rolos de lã. Foi aí que aconteceu.

"Fazendo aquilo, eu percebi que todas as coisas que poderiam ter parado no lixo me ajudaram a construir uma peça muito bonita, com valor artístico e comercial", explica. Chamado de Rosa Roja, o quadro de 1,80 metros fez a imaginação de Raphaelle saltar, e juntou assuntos que a interessavam muito: arte e as questões ambientais. "O que fiz depois foi trazer as sacolas para dentro dessa ideia".

Raphaelle defende que os resíduos sejam pensados e trabalhados não a partir da lógica do adiamento do descarte, quando apenas demoramos um pouco mais para jogar o produto fora. Para ela, é preciso dar outra vida utilitária para as sobras que produzimos em casa.

"Eu quero construir um novo produto a partir daquele material, que dure de verdade, que acompanhe as pessoas". Por isso, os quadros.

Interesse que vem de longe

Antes mesmo de entrar na Universidade Federal de Pernambuco, Raphaelle já pesquisava resíduos sólidos domésticos. Lembra que em 2007 chegou a ir algumas vezes até o lixão de Bezerros. "Eu queria escutar as pessoas que iam até lá, entender como eram suas vidas, seu trabalho. O lixo é uma questão ambiental, mas também social, em contextos como esse", diz. O lugar foi desativado em 2020.

Considerado crime ambiental, a má destinação de resíduos entrou de vez no radar dos governos. Em 2014, cerca de 84% dos municípios de Pernambuco usavam lixões. O número caiu para 11% em 2022. Pela dignidade humana, além de tudo o que significa para o meio ambiente, eles nem deveriam existir a essa altura da história.

Costurando os pontos dessa história, foi com uma parte das famílias que dependiam do antigo lixão que anos mais tarde a arte educadora começou as aulas sobre o bordado com sacolas. Com apoio da Lei Aldir Blanc, em 2021 ela aprofundou sua pesquisa em resíduos, buscando novos usos. Como parte do projeto, abriu as turmas para ensinar o que aprendeu.

Raphaelle Brito - Divulgação - Divulgação
Turma da aula de bordado da artista Raphaelle Brito
Imagem: Divulgação

Raphaelle, que deu aulas de História da Arte até a chegada da pandemia, vê possibilidades de geração de trabalho e renda com os produtos, mas reconhece as urgências do nosso tempo.

"Ainda mais hoje, as pessoas precisam do dinheiro na hora. A necessidade não espera. Por isso, nem todo mundo consegue participar. Daí, na época do curso, a gente abriu vagas para a cidade inteira. Foi muito legal porque vieram pessoas de todo lugar, e mesmo com o fim das aulas, elas continuam se encontrando", conta.

Os passarinhos de Raphaelle

Tanto em sua produção como artista, quanto nos encontros em que compartilha o que sabe, Raphaelle encontrou um fio condutor para essa primeira geração de obras. A história sobre isso é boa. Um dia depois de inscrever a ideia que teve no edital, recebeu um calendário do pai com fotos de várias espécies de aves. Ela tem fobia.

"Quando olhei, o calendário era do ano que estava quase acabando. Eu perguntei ao meu pai o que ia fazer com aquilo e ele falou para ver as fotos, que eram muito bonitas", e ela viu. Viu tanto, que encontrou sentido em elaborar esse medo de aves nas próprias telas que faria. Conta, existiu outra vontade também.

Artista pernambucana usa sacolas plásticas para bordar aves ameaçadas - Divulgação - Divulgação
Aves bordadas pela artista Raphaelle Brito
Imagem: Divulgação

"Além de ressignificar minha relação com os passarinhos, achei importante trazer quem mais sofre com a forma errada com que lidamos com nossos resíduos, que são os animais", justifica. Segundo estudo do Imperial College London, cerca de 90% das aves marinhas têm plástico no organismo. No filme Jornada Midway, o jornalista Chris Jordan explica como elas confundem lixo com comida, ao alimentar seus filhotes.

Os passarinhos de Raphaelle seguem ganhando atenção e espaço por aí. "Ainda somos novas nisso, mas expusemos em Caruaru, na mostra Expo Cores do Agreste. Estamos também com duas peças que passaram por curadoria e estão na Galeria dos Reciclados, concorrendo ao prêmio de aclamação popular".

Em agosto seus bordados de plástico podem atravessar as fronteiras do estado pela primeira vez. "Estamos aguardando uma resposta do Tomie Ohtake", um dos mais importantes espaços de arte do país com sede em São Paulo.

Tudo isso a deixa feliz? Deixa. Mas o grande sonho da artista é que as pessoas façam suas próprias obras, mudando o jeito como usam as sacolas que ainda trazem do supermercado para casa. Aulas gratuitas, e acessíveis em Libras, explicam o passo a passo no YouTube.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL