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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com exposição, Andrey Haag quer resgatar o direito ao sonho nas periferias

O artista Andrey Haag  - Divulgação
O artista Andrey Haag Imagem: Divulgação

20/05/2022 06h00

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"Durante a pandemia a Síndrome do Impostor me pegou muito forte", que é quando você se acredita uma fraude, que em algum momento as pessoas ao redor irão descobrir que não é tudo isso não; irão desmascarar você. E nem é verdade, você é bom mesmo no que faz. "Me pegava pensando se isso de fotografia era mesmo para mim, sabe?". Foi por aí que o fotógrafo e artista Andrey Haag, 28, começou nossa conversa sobre um projeto importante demais para não ser contado para todo mundo.

Andrey Haag - Juliana de Freitas - Juliana de Freitas
O artista Andrey Haag
Imagem: Juliana de Freitas
Ganhou o nome de "Eu posso sonhar?", mas sobre isso eu conto já, porque a história acontece para trás. Não é diferente com a dele.

"Em meio a todos esses questionamentos", fala sobre quando ainda estava engolido pela pandemia que nunca acabou, "eu me peguei pensando que minha mãe nunca havia me incentivado a sonhar". Isso foi doloroso de ser pensado, ele relembra. Andrey sempre quis ser artista, sempre se viu ali, na televisão.

Sua mãe, agora com 47 anos, não lidou bem com a orientação sexual do filho, lá no passado. Rompimento e saída de casa por parte dele, não foi um tempo fácil. Hoje as coisas estão diferentes, um pouco melhores, explicou depois.

"Ao mesmo tempo em que pensava tudo isso, eu também percebi que nunca soube, que eu nunca perguntei quais são os sonhos da minha mãe. Aqueles de verdade, os mais íntimos, entende". Um dia ele ligou e resolveu perguntar a ela, que respondeu tudo. E ele gravou essa conversa.

A mãe e o sonho

"Até os meus 20 anos eu queria ser professora", Viviane responde para a câmera, "mas depois eu vi que não teria como voltar para a escola. Daí eu desisti". Ela foi mãe bem jovem, e isso mudou tudo: "Você era pequeno, uns sete meses, e eu tinha que te sustentar. Fui deixando de ir para a escola. Não conseguia estudar e trabalhar ao mesmo tempo". E é assim que os sonhos adormecem, a gente nem vê. E foi assim que Andrey descobriu que é muito difícil entregar adiante aquilo que a gente quase não teve.

Andrey Haag - Divulgação - Divulgação
"Meu maior sonho é fazer minha mãe voltar a sonhar!", diz o cartaz produzido pelo artista Andrey Haag
Imagem: Divulgação
"Quando ela respondeu que não tinha mais tempo para sonhar, várias fichinhas caíram. Como uma mulher que não pôde sonhar vai incentivar outra pessoa a fazer isso? Ela me entregou tudo que tinha, fez tudo que pôde". E foi assim que começou um processo de cura dessa relação entre mãe e filho: "Aprendi a humanizar a pessoa que me trouxe até aqui", reflete hoje.

A mãe e o sonho do sonho

Andrey transformou o depoimento da mãe em um pequeno filme, que entregou num trabalho que fazia na época. Gostou demais do resultado, ficou com aquilo tudo na cabeça e no coração. Algum tempo depois, apareceu em um curso a provocação que ligou todos os pontos, que aí sim, fez nascer o "Eu posso sonhar?". As coisas só fazem sentido quando se juntam.

"Eu estava numa aula, quando o professor disse que existia um único recurso que ninguém conseguiria tirar do ser humano: o sonho. Quando ele falou isso, eu buguei. Havia escutado da minha mãe justamente o contrário, que ela não tinha mais tempo para isso, sonhar. Fiquei pensando sobre qual ser humano o professor estava falando? Quem tem assegurado o direito ao sonho?", relembra.

Andrey Haag - Divulgação - Divulgação
Moradores entrevistados pelo artista Andrey Haag
Imagem: Divulgação

Ao lado do amigo e roteirista Fernando Gois, Andrey andou pelas vielas da favela Dique do Caxeta, em São Vicente, litoral de São Paulo, entrevistando pessoas sobre seus sonhos e os desafios para colocá-los de pé, ainda mais no Brasil de hoje. De tantas urgências, com uma multidão de faltas pelo caminho. A favela foi escolhida porque um dos seus filhos mais ilustres, o cantor Neguinho do Kaxeta, tem uma música que fala justamente sobre isso, sonhar. "Na minha cabeça a gente precisava começar por algum lugar em que essa palavra já estivesse circulando", justifica.

Andrey conta que saiu mexido a cada novo encontro, inspirado, mas também com nó na garganta. Encontrou pessoas como um rapaz de 20 anos. Havia acabado de sair do sistema prisional, querendo recomeçar, correr pelo certo para o futuro, só recebia não de todo lado. Seu sonho? Um emprego de carteira assinada.

"O sonho movimenta a gente, mas também pode causar lembranças de dor, de frustração. Sonhar está no campo da angústia, da ansiedade, para quem mora nas periferias", diz. "Tenho dificuldade para entender essa beleza que as pessoas veem. Sonhar às vezes dói".

Uma conversa, que vira projeto, que vira exposição

O sonho do fotógrafo é transformar o que colheu em um filme inspiração, em uma provocação sobre quem sonha, sobre quem tem o direito de sonhar nesse Brasil violento em todos os sentidos, em todas as direções. Começou por montar uma instalação artística, no fim do ano passado.

"Pedi ao Instituto Procomum", uma organização social de Santos, "um espaço para juntar tudo e mostrar às pessoas". O espaço que encontrou, ele conta, tinha elementos que lembravam uma casa: a pia, um banheiro, quartos. Achou perfeito que fosse assim, montou a exposição em cima dessa história.

Andrey Haag - Divulgação - Divulgação
Para o projeto, Andrey Haag passou a entrevistar e fotografar moradores de periferias
Imagem: Divulgação

"Trouxe vários elementos para a exposição. Coisas que fui escrevendo após as entrevistas, coisas que encontrei entre uma casa e outra. Coloquei chaves penduradas nas paredes, já que um dos grandes sonhos que nós, pobres, temos, é a casa própria, e juntei a tudo isso um vídeo com as entrevistas que fizemos. Foi impactante", relembra. Cartazes com trechos dos depoimentos também foram colados pela cidade.

É preciso romper com a ideia de que não temos direito ao sonho

E isso, Andrey defende, acontece no cotidiano, em cada nova conversa que temos umas com as outras, mas precisamos, como sociedade, criar condições para que isso aconteça. Seja exercido como direito humano.

"É muito difícil falar de sonhar, quando as pessoas não têm teto ou comida. A gente precisa trabalhar para garantir ao menos isso para todo mundo", finaliza.