Topo

Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A falsa maioria e uma das fórmulas da desesperança

iStock
Imagem: iStock

24/03/2022 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Em Planaltina, no Distrito Federal, um técnico de enfermagem acusou um médico de ameaça. O motivo é que o funcionário estava ocupando um lugar reservado ao carregador de celular do médico. Isso mesmo, a um carregador de celular.

Em Querência, no Mato Grosso, um vereador apontou uma arma para outro político durante uma divergência, dentro da Câmara dos Vereadores. Isso foi depois de tentar acertar um soco, que errou, e quase cair. Sozinho.

Em Niterói, Rio de Janeiro, uma moradora teve o apartamento depredado à luz do dia por um homem e uma mulher, que seriam donos de um restaurante de onde havia pedido comida pouco antes. Ela havia reclamado com o aplicativo sobre a qualidade do lugar, que tinha cancelado o seu pedido. Os donos chegaram com a comida mesmo assim, queriam ser pagos pelo trabalho.

Mais cedo, fiquei pensando se o mundo está, realmente, ficando impraticável de todos os lados. Ou se sou apenas eu que estou errando ao querer ficar bem-informado demais. Terminei a manhã achando que eram as duas coisas.

É que hoje em dia, por um lado, parece que a nossa percepção anda sendo destreinada para perceber o frio ou morno, de tão atulhada de estímulos que ela está. Para ser notada por nós, qualquer coisa precisa estar fervendo, transbordando. Além da conta. Isso vale para as coisas que acontecem, mas parece que também vale para as pessoas que querem acontecer. Nunca é demais lembrar que nada além da conta pode ser bom o tempo todo.

É um círculo vicioso: quanto mais diferente, mais chama atenção. Quanto mais chama atenção, mais o algoritmo entrega. Quanto mais o algoritmo entrega, mais o debate público gira em volta daquilo. E quanto mais o debate público gira em volta daquilo, mais temos a falsa sensação de que só existe aquilo a ser conversado. Chamam de falsa maioria.

Falsa maioria é uma das novas estratégias políticas do nosso tempo, me explicaram. Funciona assim: surge um assunto, espontâneo ou plantado. E em volta dele organizam-se muitas pessoas, podem ser robôs também, que querem direcionar o entendimento público em favor de sua comunidade.

Para fazer isso, passam a comentar incansavelmente de uma maneira que você e eu, quando chegarmos naqueles comentários, imaginemos que já existe um consenso sobre a conversa. E que só a gente ainda não tem uma opinião formada. E pior: que estamos pensando errado, caso achemos diferente do que a falsa maioria construiu.

Sabemos que aquilo não é o mundo, é um recorte organizado do mundo. Mas como explicar isso o dia todo para quem está chegando a todo o tempo em todas as conversas?

Tem sido comum escutar de amizades, cheias de esperança até outro dia, que o mundo anda se complexificando de uma maneira exponencial. Que os manuais que nos serviam para navegar pelos dias até a semana passada já não servem muito para a próxima semana em diante. Ando pensando sobre isso.

É que sim, o mundo anda tremendamente esquisito, como escreveu a poeta portuguesa Matilde Campilho. Possível que nunca esteve tanto. Mas é certo também que ele nunca reuniu tantas pessoas dispostas, disponíveis e comprometidas a torná-lo uma versão melhor que hoje, uma versão que abrace todas as formas de ser e estar por aqui. ECOA mostra, diariamente, como isso é uma verdade, com as histórias que conta. E pense que, iguais às que são publicadas, existem dezenas de outras que não dá tempo de ir atrás. E outras das quais nem se sabe.

O mundo não é, o mundo está sendo, já escreveu Paulo Freire. Não sendo estático, parado no espaço e no tempo, ele é a soma do movimento que cada uma de nós entrega. Que a gente saiba disso, em todos os momentos e lugares. E que a gente use, por exemplo, uma parte do nosso tempo online para compartilhar com o mundo quais são as pessoas e organizações que nos deixam com esperança que dias melhores virão. E virão. Que tal?