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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quebradinha: novos tempos, novos ídolos

Marcelino Melo (Nenê) e uma obra do projeto Quebradinha - Reprodução/Instagram @quebradinha_
Marcelino Melo (Nenê) e uma obra do projeto Quebradinha Imagem: Reprodução/Instagram @quebradinha_

07/12/2021 06h00

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Eu conto por aí, já até imagino como algumas pessoas devem estar cansadas disso. Uma parte considerável de nós nasceu para dentro e para fora quando o primeiro carro passou por cima de um golzinho de chinelo na menor rua de terra do fundão de São Paulo; cantando a toda comunidade pobre da zona sul. O resto é história ou consequência.

Marcelino Melo, o Nenê, é um dos grandes artistas que temos no nosso tempo. Produtor audiovisual, videomaker, arte educador, artista. Nenê existe para tantas habilidades e talentos que brotaria uma lista por aqui, não um artigo. Daí a ideia de ficar no principal, a boa conversa que tivemos ontem: a gente cria sentindo uma coisa, mas chega no outro, outra. Arte é isso, uma negociação de sentir e sentido entre as pessoas.

Quebradinha é o seu projeto mais recente, uma coleção de memórias estéticas e afetivas, por que não, em miniatura. Você vê, mas escuta Bartô Galeno tocando na imaginação e uma criançada correndo atrás do carro do ovo. Uma das casinhas mora dentro de uma lâmpada, eu nem acreditei.

A igreja, o bar, a escada sem acabamento que sobe do lado de fora e alcança o quarto lá em cima, também sem reboco. Tudo tem tanto cuidado, detalhe, que durante os minutos que eu estive próximo dele e de suas obras, podia-se escutar: você cria em cima de fotos que tira das casas, artista? A resposta era que não, tem 26 anos que seus olhos e o coração registram tudo, todos os dias. Faltava o suporte para traduzir pro mundo, que veio no fim de 2019, durante as férias. Ali nasceu a primeira casinha, ele conta.

Quebradinha - Reprodução/Instagram @quebradinha_ - Reprodução/Instagram @quebradinha_
Obra do projeto Quebradinha
Imagem: Reprodução/Instagram @quebradinha_

"Tem um lance da escala, sabe. A caixa d'água precisa ser proporcional a uma em tamanho real. É treta chegar nisso". Imagine, se você medir, a maçaneta na porta miniatura ocupará o mesmo tamanho que proporcionalmente tem essa aí da sua casa. Eu fiquei 10 minutos em silêncio depois de saber disso, só dizendo que ele é incrível demais. E é.

Reportagens e mais reportagens depois, Nenê falou para tanta gente e já; exposições, convites de todo tipo para celebrar sua obra e talento. Chamou atenção da Bienal de Arte de São Paulo, uma das maiores do mundo. Hoje pode ser conferido em uma exposição do Instituto Moreira Salles sobre outra gigante, a Carolina Maria de Jesus. As obras dele encontram as obras dela para contar os Brasis que o Brasil pouco conhece, mas deveria. Para ser melhor que hoje.

Passaria horas escrevendo sobre o Nenê, o Quebradinha. Que ele se preocupa muito que este projeto não seja resumido a entretenimento, mas lido também como um registro histórico dos saberes e tecnologias que só as periferias e favelas têm; que existe ali, em cada obra, um documento estético que vai apoiar a história que será contada sobre todas e todos no futuro; que até a máscara miudinha estendida no varal escorado no tijolo à vista marca um tempo: o tempo de uma pandemia que gritou que quem mora em casas feito àquela sofreu antes, durante e depois da pior crise coletiva do nosso tempo. E pouca coisa mudou, mesmo depois disso.

Algo está acontecendo quando a sua admiração artística mora em alguém a uma rua de distância, de chinelo de dedo: o Nenê. Ou quando uma referência intelectual é a pessoa com quem você discute de figurinhas do zap ao próximo plano de governo que vai nos tirar deste lugar de hoje: a Gisele Britto. A futura imortal da ABL está em Vão, de Jéssica Moreira. E se os governantes fossem minimamente espertos leriam a Mariana Belmont, toda semana por aqui.

O que precisa ser feito do Brasil está na boca de alguém de 16 anos que mora na Cidade Tiradentes e conhece essas quatro pessoas aí de cima dos saraus.