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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ciano Buzz: Queria ter visto algum desenho que contasse de mim

Ciano Buzz, músico, escritor, artista plástico e educador autodirigido - Divulgação
Ciano Buzz, músico, escritor, artista plástico e educador autodirigido Imagem: Divulgação

26/11/2021 06h00

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"Eu acredito que de todas as coisas que a colonização lesou no povo, um dos direitos roubados que é mais visível ainda hoje é o direito ao tempo", me escreveu o Ciano Buzz algumas semanas atrás quando perguntei sobre o Terreiro do Futuro, um dos muitos projetos que costura. A iniciativa, aliás, está com financiamento coletivo aberto neste momento.

Ciano tem 23 anos, é músico, escritor, artista plástico e educador autodirigido. "Além disso tudo, sou negro, candomblecista e LGBTQIA+".

"Faz parte da hegemonia a ideia de uma cisão no tempo", explica, "a partir de como nos é ensinada a história, é difícil entender os futuros como frutos dos passados, mas para nós, do axé, o futuro é ancestral".

Daí me contou que nasceram com a Dara, "a macumbeira do amanhã" como deu o nome, para trazer essa conversa para o dia a dia, materializar algo que escapa para o mundo conceitual. Uma personagem de história em quadrinho para dizer que o tempo não é como nos contaram. Nem a história dos povos.

"Dara é uma menina aventureira, arqueóloga, que investiga, no século 22, o legado que deixamos hoje para esse terreiro do futuro". Para Ciano, o projeto é um manifesto afrofuturista que pega emprestado as possibilidades do documentário, dos quadrinhos e contos, de todas as formas de arte, para conversar mais sobre tanta coisa que, ainda, conversamos pouco como sociedade. Uma delas: cabe a espiritualidade de todas e todos neste mundo. O que não cabe é a ausência de respeito e cuidado entres diferentes maneiras de o sagrado se manifestar.

Ciano Buzz 2 - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

"É um jeito de dialogar sobre antirracismo, racismo religioso, formas de contribuir para que nossa cultura sobreviva ao longo do tempo. Ao mesmo tempo aborda temas como gênero, sexualidade, classe, raça, sustentabilidade, permacultura, economia, e outros temas importantes para debatermos dentro das comunidades de axé", detalha.

O Terreiro do Futuro, este espaço manifesto, brotará das terras de Suzano, região metropolitana de São Paulo e será construído com técnicas de bioconstrução, práticas ancestrais de construção que levam em conta a saúde da população e do território. Por isso o financiamento coletivo, por isso precisam do apoio de quem puder.

Ciano Buzz 3 - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

NÃO SE LIGA PONTOS OLHANDO PARA A FRENTE

Ciano nasceu e cresceu na região da Cidade Líder, zona leste de São Paulo. Foi a partir de lá que foi se construindo. Apaixonado por desenho desde sempre estudou mangá, passou ao estilo Marvel, como diz, desembarcou no cartum e continuou seguindo. "Sigo estudando sempre, querendo me desenvolver mais. Essas fitas nunca têm um fim". Essas fitas é o aprender, um mar imenso de conhecimento.

"Trabalho com projetos socioculturais desde moleque, produzindo eventos culturais na quebrada, ministrando oficinas de desenho e outras coisas". Neste ir e vir da vida, ele morou e trabalhou no Projeto Âncora, onde encontrou o jeito de pensar e agir educação que fez sentido e que carrega até hoje.

"Eu trabalho como artista independente e educador autônomo junto com meus coletivos. Começando um corre na criação de conteúdo audiovisual junto com o pessoal do meu terreiro, a TV Odara". A ideia, explica, é transferir as histórias que escreve para o YouTube, para o formato vídeo. Disputar a imaginação e a memória na Internet, tarefa difícil, ele sabe. Mais que isso, ou junto com isso, Ciano quer alimentar e inspirar novas referências, outros jeitos de pensar e sentir. Disputar o poder em todos os sentidos, para todas as direções.

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Imagem: Divulgação

"A hegemonia cultural segue nas mãos dos mesmos grupos, logo as posições de poder, as posições de decisão, as funções de produtor, diretor, diretor criativo, investidor, tudo", questiona. "Assim serão divulgadas só as pessoas que são interessantes para esses grupos. Por isso é importante ter pessoas diversas não só criando o produto final, mas diversidade em toda a sua produção, para que esse pensar e fazer realmente seja diverso".

Para o multi-artista é essencial entender que boa parte dos espaços não são abertos para que as contradições sejam expostas e enfrentadas de frente. Seu corpo e sua caminhada sabem disso. "Se estamos lá é porque não ameaçamos a posição do poder. Não rola se satisfazer com isso", justifica, para em seguida já apontar para onde está olhando. Para onde caminham a sua existência e a sua arte.

"O futuro que quero criar não é uma versão melhorada desse rolê que a gente tem hoje. Não há uma versão melhor disso. É preciso romper com esse mundo criado por essa meia dúzia se quisermos algo realmente criado para que gente como a gente possa existir".

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E SOBRE ISSO, PARA QUE SERVE A ARTE?

"Arte é expressão da alma materializada em algum suporte, seja música, desenho, o que for que represente essa sua parte interna", Ciano começou assim a melhor definição que escutei até hoje.

"Só que o bagulho fica mais loco quando a gente fala de um menino negro de quebrada. É um processo doido quando a humanidade, a alma e o sentimento são desapropriados". A alma e o sentimento desapropriados, anota isso. "Que alma um menino negro pode expressar se ela lhe foi retirada, sabe? Quais sentimentos eu posso botar para fora se meninos não podem sentir?", se questiona.

Ciano explicou que foi se abraçando a arte que encontrou, inicialmente, um refúgio, e mais tarde, uma maneira de expressão e luta. Um jeito de caminhar neste plano. Nos personagens que leu e passou a desenhar depois, as aventuras que eram perigosas demais de se viver para alguém que se parecia com ele, para si mesmo. Como define, "a arte pra mim acabou sendo um grito de guerra silencioso".

Ciano Buzz 6 - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

"É importante ser racializado, ser politizado, ter consciência de classe. Mas às vezes é bom também cuidar do corpo, dançar, curtir com os amigos, aquilombar, criar, cultivar uma fé, se expressar, fazer terapia. É meio que esse equilíbrio que sustenta a luta", resume, para deixar como mensagem que "a arte acaba sendo uma ferramenta de luta, mas principalmente um escape, um recurso para sustentar nossa presença e sanidade".

UM LIVRO QUE É DISCO, UM DISCO QUE É LIVRO

No caminho de expressar a sua alma, como definiu a arte mais acima, Ciano lança sábado, 27, As Casas de Unzó, um livro e disco digital idealizado por ele e desenvolvido pela produtora Peste Negra.

O livro, ele explica, começou a ser escrito em dois mil e dezesseis, mas só em dois mil e vinte o coletivo conseguiu uma política pública para financiar a sua vinda ao mundo, o Programa VAI. Que aliás, recomenda-se muito conhecer mais.

Para inquietar o interesse, um resumo do que vem por aí, que peguei emprestado da divulgação do evento: "depois de perder a casa, assim como tantas outras crianças da comunidade, Unzó se vê às voltas com a avó em busca de um novo lugar. Sem ter onde dormir, é no ponto de ônibus que a magia acontece e é ali que conhecemos os mais inusitados personagens, capazes de gritar ao mundo suas verdades, levando o menino a descobrir quem ele é e qual seu mais profundo desejo". Para saber mais, clique aqui.

4 ARTISTAS E UM COLETIVO QUE CIANO BUZZ RECOMENDA SEGUIR

@nectarlina
@cauabertoldo
@will.mangraff
@aua__art
@ocorrecoletivo