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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quando a realidade vira paisagem todo mundo sai perdendo

Bill Murray em "Feitiço do Tempo" (1993) - Reprodução
Bill Murray em "Feitiço do Tempo" (1993) Imagem: Reprodução

20/07/2021 06h00

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Para uma parte de nós, a vida anda um pouco como "O Feitiço do Tempo", aquele filme com o Bill Murray em que ele fica preso num dia que se repete exaustivamente. Para a grande maioria de todo o restante é só um remake ainda mais precarizado de "Tempos Modernos". Com álcool em gel, máscara, mas sem vacina para todo mundo porque alguém queria ganhar uns dólares em cima.

Diz a tradição de Punxsutawney, uma cidadezinha de Pittsburgh, na Pensilvânia, que as marmotas têm a habilidade de adivinhar a duração do inverno. Por isso, em todo fevereiro, a população local e turistas de todo canto se reúnem em um festival, o Dia da Marmota.

Funciona assim: se o bichinho voltar para sua toca depois de ver a própria sombra, ainda vem muito frio por aí. Se ele sair e ficar de boas lá fora, pronto, a primavera está a caminho. Isso desde 1886, com marmotinhas que sempre ganham o nome de Phil.

Foi este o enredo que o diretor Harold Ramis pegou para contar a história do arrogante Phil, olha aí, um meteorologista de TV que viaja ao festival para uma reportagem e acaba ficando preso na cidade por causa da neve na estrada. Mais tarde, descobre que é um pouco pior que isso. Phil, na verdade, está preso a um dia que se repete, igual, noite após noite, não importando o que ele faça para isso mudar.

Pela repetição, a vida o convida a prestar atenção aos detalhes de um dia que foi apenas paisagem para os seus olhos. E virar uma pessoa melhor.

Dia da Marmota é a expressão que escuto de amigas e amigos sobre o último quase um ano e meio, que me explicam assim: quarta-feira ou domingo, por aqui, já não tem diferença alguma, é que sempre se parece o mesmo dia. Faz algum sentido.

Para quem pôde ficar em casa, algumas descobertas importantes para depois que isso tudo passar. Uma delas: vamos a uma festa não somente para dançar o corpo, mas para ritualizar o descanso, produzir a vida. Sem ela, a gente só é uma sucessão de trabalha e para. E fim.

O que transforma mais uma festa num fim de semana da vida num ritual importante é a habilidade de não transformá-la em uma paisagem. E transformamos em paisagem uma festa, um livro, um café com quem a gente gosta, assim: estando lá, mas não estando. Cabeça em mais três lugares ao mesmo tempo, um olho no rosto de quem o acompanha, outro na tela do celular o tempo todo.

O grande problema de dias e noticiários que parecem se repetir é que, em algum momento,
a realidade vira paisagem. E paisagem se contempla, não se problematiza.

O grande problema de uma realidade que vira paisagem é que seguimos perdendo ao menos mil vidas de brasileiros e brasileiras por dia, mas não parecemos mais tão chocados com isso quanto antes. É que por estes dias chegaremos ao absurdo número de 600 mil pessoas mortas para algo que temos vacina já há algum tempo, mas que não alcançou, em tempo, a quem deveria chegar. Ganham dinheiro precarizando a vida, ganham dinheiro negociando as mortes.

O grande problema de uma realidade que vira paisagem é que a maior parte da população ainda enfrenta enormes desafios para conseguir se alimentar com o mínimo necessário, mas as doações despencam dia após dia. É que o preço do gás de cozinha já passou de R$100 em vários lugares e tem família usando lenha, pois é isso ou nada. E isso não choca tanto.

Quem nunca parou de se expor não consegue acessar a vacina que nos salva tanto, quanto quem pode comprar uma passagem para os Estados Unidos e se vacinar por lá. Será sempre isso?

O grande problema de uma realidade que vira paisagem é que não estamos num filme com o Bill Murray, em que a vida repete os dias com uma chance para acordarmos o olhar para o que é essencial, para o que é importante. Para as pessoas que nos rodeiam, ainda mais agora.

Mais de 116 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar ou passando fome, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Aqui, no mundo real, o que a gente consegue transformando a realidade em paisagem é perder a nossa humanidade. E sem ela, sem chance.