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Tony Marlon

Periférico, Maradona foi um recado: Nós existimos

Moradores da Vila Fiorito se despedem de Maradona, o filho ilustre dessa periferia argentina - MATIAS BAGLIETTO/REUTERS
Moradores da Vila Fiorito se despedem de Maradona, o filho ilustre dessa periferia argentina Imagem: MATIAS BAGLIETTO/REUTERS

Tony Marlon

28/11/2020 04h00

Atravessaram um caminhão na encruzilhada, alguns passos depois da Azamor 523. Não se dava notícia de quem o dirigia, disseram na TV, e poderia ser: aquele senhor encostado no muro com as mãos no rosto. A mulher sentada na calçada parecendo não acreditar que estava ali, mas estava. Um garoto que de tão jovem, quando nasceu, pode ser que já fosse tarde demais. Quem contou pode ter sido o pai, a mãe, aquele tio distante em algum fim de semana dos anos 1990.

Passional, portenho, olhos cheios, coração ainda mais: Yo vi la mano de Diós, hijo.

Na folha branca de papel, tão improvisada quanto a tristeza de uma pequena multidão que ainda se formava em frente à casa em que Diego havia nascido, estava assim, à caneta: "Diego é nosso. De Fiorito. Sempre".

Que Maradona fosse do mundo, mas Diego, nunca. São coisas diferentes, apesar de parecidas. Este texto não é sobre ele, é sobre isso.

Até metade da adolescência foi em Villa Fiorito, uma das periferias de Buenos Aires, que Dona Tota, Don Diego e seus oito filhos viveram. A pobreza não deixa as histórias mais bonitas, não romantize dor e falta. Menos ainda é ela quem constrói certas condições para que jornadas assim aconteçam, isso é sensacionalismo barato para vender jornal. Não sabem o mal que fazem.

É que a pobreza não dá conta de matar todos os sonhos, de todas as ruas, de todas as periferias e favelas, de todo o mundo. O quinto filho da Azamor 523 é um dos sonhos que escapou da gestão das urgências, para outros tantos que ficaram pelo caminho. Isso diz muito sobre o poder de morte das desigualdades. Diz ainda mais sobre as ideias e posições que carregaram Diego pela vida.

Foi por aquelas ruas de casas empobrecidas, como as descrevem as infinitas reportagens e livros, de famílias que se dividiam entre alimentar filhos e alguma esperança de que as coisas dariam certo, seja lá o que isso quisesse dizer, que El Diez começou o futebol para os argentinos. O resto é história.

Disse numa entrevista, certa vez: "Eu cresci em um bairro privado. Privado de Luz, de água, de telefone". Era de Fiorito que Diego falava, mas poderia ser sobre a Cidade Tiradentes. Ou a outra, a de Deus. Diego foi espelho de uma sociedade, nunca se encaixou ou quis ser para ela um exemplo.

Pouco depois de confirmada sua passagem, se aglomeraram em frente à casa azul um pouco descuidada hoje; se juntaram à cerca um pouco caindo, um pouco em pé, bem diferente hoje; subiram em cima do muro que nem é muro, uma chapa de alumínio de várias partes enferrujadas, pessoas que queriam exibir orgulhosas que a eternidade havia nascido entre elas.

Colocaram por lá, eu vi na TV: bandeiras, cartazes feitos à mão e algumas tantas fotos um pouco amassadas do passado que nunca passou. Imagino que nunca vá.

Uma parte da sociedade, aquela que sempre se enxergou nos filmes, nos jornais, nas revistas. Aquela que sempre fez as coisas mudarem de rumo, que sempre foi o centro das atenções e do poder, tem dificuldade em entender o que Diego significou para a outra parte do povo. Mais que um jogador, Diego foi um recado: nós existimos.

O canal assinou assim a transmissão: La muerte de Diós, en vivo, enquanto mostrava um senhor que corria de um lado para o outro, balde na mão. Duas pessoas que tiravam algo parecido com uma porta velha, jogada no quintal. Uma senhora de camiseta com linhas em preto e branco pegando garrafas de refrigerante que pareciam muitas, espalhadas por todo o chão.

Sim, Fiorito se juntou na dor para arrumar a casa em que Diego nasceu, um mutirão. Um último nós por nós, de tantos já feitos. De tantos que ainda virão. Para um até quando que não sabem.

O estádio do Boca Juniors, uma segunda casa de Maradona na Terra para grande parte dos argentinos, foi para o escuro da noite mais triste de sua história com uma multidão de estrelas que pareciam reverenciar do alto. E no chão, acesas em La Bombonera, somente as luzes do camarote de seu filho mais conhecido. Foi como se iluminasse as pessoas de Alzamor, distante 20 quilômetros dali.

O que Diego fez por Fiorito foi o que Maradona fez pela Argentina, me explicaram nos últimos dias: construiu momentos para que um povo de tantos desafios e problemas fosse feliz como nunca, mesmo a vida seguindo difícil, como sempre. Que durante boa parte do tempo nem foi tanto sobre o futebol, foi mais sobre a chance de poder respirar de vez em quando, equilibrando alegria e Gardel.

O mais humano dos deuses, como escreveu Eduardo Galeano, foi síntese das contradições que todas e todos nós carregamos. Uns mais, outros menos. Mas que só apontamos no outro. O jornalista Walter Rotundo resumiu assim, quando perguntado sobre as fraquezas e erros, sobre a humanidade do seu ídolo: "Não julgamos Diego pelo que fez com a sua própria vida, mas pelo que ele fez com as nossas". Rotundo e Stella Maris batizaram suas gêmeas de Mara e Dona.

Um lugar chamado Villa Fiorito existe, que nunca mais se esqueçam disso. Ao sul do sul do sul. Pariu Diego, que pariu Maradona, que para os argentinos, pariu o futebol. Você não precisa gostar, não precisa concordar com a comoção, mas que este momento nos faça nunca mais perder de vista que o talento e o eterno brotam em todos os lugares. E que toda periferia é o centro para alguém. Como Fiorito foi, de alguma maneira, para o mundo do futebol neste 25 de novembro da História.