O Brasil se acostumou com uma realidade doente
O antropólogo e psicólogo Roberto Crema, no filme Eu Maior, diz que "uma pessoa normótica é aquela que se adapta a uma realidade doente". Naturaliza absurdos.
Normose, ele conceitua, "é uma doença típica de momentos em que nós convivemos num contexto em que predomina a violência, a falta de escuta, de cuidado e de responsabilidade". É isso: o Brasil não é o país do futuro. O Brasil é uma nação normótica.
Na quinta-feira à noite, às vésperas do feriado da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas morreu após ser agredido no supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. João era um homem negro, enquanto seus agressores eram homens brancos.
O vídeo do assassinato ganhou as redes sociais. Nele é possível ver uma pessoa que trabalha no mercado tentando impedir a gravação: "Não faz isso que eu vou te queimar na loja". Alguém espancado até a morte não motiva uma intervenção, mas o celular registrando tudo para denunciar, sim. Normose.
Em agosto, no Recife (PE), em loja da mesma rede, a morte de um homem não impediu que o local continuasse funcionando. O corpo do representante de vendas Moisés Santos foi cercado por caixas de papelão e engradados de cerveja. Coberto por guarda-sóis ficou isolado com uma fita amarela e preta enquanto clientes continuavam as compras. Normose.
Há seis anos Claudia Silva Ferreira foi arrastada por uma viatura da PM carioca por 350 metros. Morreu logo depois. Um dos policiais envolvidos no caso foi nomeado na última terça-feira para um importante cargo no governo estadual. Procurados, disseram que ele responde a processo, mas que não existe nenhuma condenação ainda. Normose.
Entre 2008 e 2018, segundos dados recentes do Atlas da Violência, o número de homicídios de pessoas negras no país aumentou 11,5%. Já entre pessoas não negras caiu 12,9%. Logo após saber do assassinato de João Alberto, o vice presidente Hamilton Mourão declarou: "Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui".
A normose brasileira não é simplesmente uma patologia, cada vez mais se mostra como um projeto. Ao acostumar os olhos e a opinião com a barbárie, com o absurdo, parte da sociedade lava as mãos e responsabiliza o espírito do tempo pela dormência ética e de humanidade que carrega no peito.
Enquanto isso, a outra parte de nós segue contando os corpos, as rodas de luto e o número de vezes em que se levanta para tentar garantir o mínimo: a vida. Isso é inacreditável.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.