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Tony Marlon

Ideologia é algo que só acontece aos outros?

Tony Marlon

31/10/2020 04h00

Eu imagino assim: ideologia é uma espécie de óculos para a realidade, só que usado por todo mundo que eu conheci até hoje. É por onde passa o que a gente escuta, vê ou sente antes de entulhar-se aquilo tudo em um canto da imaginação, para logo depois soltarmos em palavras, atitudes ou comportamentos no mundo.

Ou seja: difícil existir qualquer movimento meu ou seu. Palavra, minha ou sua, que não seja uma expressão, em maior ou menor intensidade, das ideias que a gente carrega para dentro de nós. O conjunto dessas ideias forma uma síntese de mundo que orienta nossas ações sociais. A essa síntese de mundo deram um nome: ideologia. Se entendi bem.

Ideologia é, portanto, a lente dos óculos que nos ajuda a enxergar isso em detrimento daquilo, mesmo as duas coisas sendo exatamente do mesmo tamanho. Ou estando à mesma distância. É também que nos move para agir sobre o que acabamos de ver, nossas atitudes.

As pessoas não saem da ótica mais famosa da Estrada do Campo Limpo, todas, de óculos iguais. As lentes são diferentes, pois as pessoas são diferentes. O mesmo se aplica à ideologia: variam de pessoa para a pessoa, é particular. Mas está ali, sempre.

Na conversa brasileira, o grande desafio de hoje parece ser explicar que ideologia não é algo que só acontece aos outros, nunca a mim. São óculos, mas que todo mundo usa. Essa confusão pode soar como uma coincidência, um acidente, mas é muito bem planejada. E tem funcionado.

É comum, especialmente às vésperas da eleição, que uma parte de nós comece a dizer bem alto que não precisamos de ideologia nos cargos, mas sim, de trabalho para que as coisas, enfim, aconteçam neste país. Em geral, quem diz isso só quer desalojar uma ideologia do poder para ocupar aquela cadeira vaga com a sua própria.

O problema não é ter uma ideologia. Aliás, isso nunca pode ser um problema. Todas e todos temos uma visão de mundo que acreditamos e queremos defender. Inclusive como projeto político. E precisamos nos sentirmos seguras para fazer isso. Desde que, obviamente, as nossas crenças não gerem dor, violência ou sofrimento a outras pessoas.

O problema é a desonestidade que tomou conta do debate público brasileiro nos últimos anos. De propagandear, inclusive com dinheiro público, que somos uma sociedade dividida entre pessoas neutras e puras de um lado. E passionais ideológicas do outro. E que só um deles pode nos levar à Terra Prometida, já que a outra parte está bêbada pelo que acredita.

Como nos deixou o ex-secretário de Educação da Cidade de Paulo, o educador Paulo Freire, "não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é saber: a sua base ideológica é inclusiva ou excludente?". Lembre-se disso.