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Tony Marlon

Covid-19 tirou algo essencial para a vida: o horizonte

Tony Marlon

17/04/2020 04h00

Da última vez em que estive por aqui me escreveram assim quando o texto andou por aí: o mundo está desabando, colunista, e você fazendo ciranda com as palavras. Gostei que escrever se pareça algo como fazer uma ciranda com as palavras. Nunca tinha pensado essa imagem. Vou usar para vida, obrigado por isso.

Mas, a contar pelo tom, pelo jeito, pelo momento em que estamos e, especialmente, pelos comentários nas outras reportagens sobre o tema, vou pegar como verdade que a pessoa estivesse incomodada por eu não estar falando sobre o ministro, as pesquisas de cura, os delírios sobre uma cura prometida. Mas sim gastando o tempo do UOL e o meu, e o de quem me lê, para escrever sobre um futuro pós Coronavírus, sendo que não resolvemos nem o presente com ele.

Eu entendo o incômodo, mas diariamente, por causa do meu trabalho, eu só escuto e respondo ao presente de tudo pelo qual estamos passando. Às urgências mais urgentes que uma pandemia como essa, de mundo todo, revela especialmente nas periferias e favelas de um país feito o nosso. O vírus é só uma das formas de morrer quando todas as formas de sobreviver estão em pausa numa cidade feito São Paulo.

Já imaginou nos cantos do país? E nos cantos do mundo, você imaginou?

Na última segunda-feira eu não suportei. Acordei com o corpo, a cabeça e o coração tão cansados quanto quando é uma véspera de Natal e a gente trabalha muito para ficar uns dias em casa com a família, sabe? Aquilo, mas maior.

O dia foi estranho, não rendeu quase nada no trabalho e na vida. Coisas, pessoas e conversas que, em geral, me animam e inspiram, perderam a capacidade de me mover, por algumas horas. Eu me afundei no que significa ficar tantos e tantos dias sem cultivar uma vida mais corriqueira: esbarrar em alguém sem querer e pedir desculpas. Pegar metrô, mesmo que cheio às 6 da manhã. Ir ao cinema ver um filme de gosto muito duvidoso.

Lembrei: perder o ônibus que nunca passa no horário, mas é pontual quando estou a 15 passos do ponto. E atrasado.

Além de tudo que faz com a saúde do corpo, o COVID-19 ainda nos roubou o bem mais precioso: o horizonte.

Na segunda, ao fim do dia, fiquei olhando para a rua que estava vazia de um jeito diferente, não era feriado ou coisa parecida, e pensando nisso: tantos dias trancada aqui, sem poder estar ao vivo com outras pessoas, em outros lugares. Em conversas para ter imaginações que construam em mim mais e mais horizontes.

Agora, uma lista de coisas, situações e pessoas que constroem horizontes: a janela dos outros, a rua, qualquer coisa escrita pelo Gilberto Gil. Ver um show ao vivo do Emicida ou da Luedji Luna. Encontrar, sem querer, um caminho de formiga na Avenida Mateo Bei, em São Mateus.

Achar que perdeu o horário do último ônibus para o Campo Limpo, e estar errada; tem mais um, corre.

Tem quem vá chamar o que aconteceu na minha segunda-feira de queda de energia, de falta de presença. De melancolia. E tem quem prefira, como eu, imaginar que acordou, um dia, sem horizontes. Quando todos os dias parecem iguais, mesmo que sendo diferentes, em algum momento a gente acreditará na primeira parte da frase.

E ainda tem aqueles e aquelas que não possuem nem o direito de sentir e nomear o cansaço que passa pelo corpo, nem em momentos assim, o mundo em casa: meu vizinho, minha vizinha. O cobrador do último ônibus em que consegui subir, em tempo, para chegar até onde estou até agora, já tem muito tempo.

Minha mãe, e tantas outras, que não teve o direito de estar em casa, mesmo o mundo não sabendo outra maneira de se cuidar além dessa. Isolamento social para quem?

Lembrei de um provérbio chinês que li outro dia numa livraria que nunca mais pude ir, saudades dela e dos horizontes que ela sempre cria em mim: sempre a primavera, nunca as mesmas flores.

Respira, vai passar.