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Tomas Rosenfeld

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sentar para viajar

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Imagem: iStock

19/07/2022 06h00

Adolfo Taubkin nasceu na Rússia e chegou ao Brasil em 1929, com 19 anos. Em apenas seis meses, aprendeu a falar português e foi aceito no curso de direito da USP, um dos mais concorridos do país. Teve quatro filhos, Oscar, Daniel, Myriam e Benjamim.

Myriam casou-se com meu pai e nos transmitiu um hábito que aprendera na infância. Antes de viajar, nos fazia sentar por alguns instantes. Ficávamos então quietos por cerca de um minuto. Encerrado esse momento, saíamos de casa prontos para a viagem.

Lembrei desse ritual ao assistir o documentário "Navalny", disponível no streaming da HBO. O filme retrata a vida de Alexei Navalny, advogado, político e figura importante da oposição a Vladimir Putin na Rússia. Durante o documentário, conhecemos os detalhes da tentativa de assassinato sofrida pelo ativista. Ouvimos os sons agonizantes enquanto ele sentia os efeitos do veneno em seu corpo e vemos imagens de sua internação - primeiro em um hospital russo e, então, sua transferência para uma UTI em Berlim.

Em uma das cenas mais marcantes, vemos Navalny em sua casa na floresta negra alemã, onde abrigou-se durante a recuperação, ligando para as pessoas que foram responsáveis por seu envenenamento. Após uma investigação, ele havia descoberto não somente os nomes, mas também o número de telefone de seus algozes.

Em uma dessas ligações, Navalny se apresenta como um burocrata russo responsável por elaborar um relatório sobre o caso e os motivos que levaram ao fracasso da operação. Do outro lado do telefone, um cientista fornece detalhes de como havia ocorrido a tentativa de assassinato. Revela, inclusive, a peça de roupa em que o veneno havia sido depositado: a cueca de Navalny.

Esses momentos são, sem dúvida, os de maior intensidade emocional do documentário. Contudo, a cena que mais me marcou foi um ritual que Navalny compartilha com a família: sentar para viajar. Em duas diferentes cenas, Navalny se senta com a família em casa. Com as malas já fechadas, eles interrompem tudo o que estão fazendo. Sentam-se, relaxam os ombros e os braços, olham uns para os outros, conferem se não estão deixando de levar os passaportes e cabos do telefone e, então, levantam-se outra vez.

Até aquele momento, eu pensava que esse hábito era uma particularidade da família Taubkin, talvez criado por Adolfo, pai de Myriam. Nunca havia antes presenciado esse ritual. Depois de assistir ao filme, curioso, fui pesquisar. Descobri que na verdade se trata de uma antiga tradição russa, com diversas explicações, com raízes religiosas, psicológicas e práticas.

A explicação com que mais me identifiquei trata da necessidade de nos prepararmos mentalmente para a jornada que está à nossa frente. Concentrar-se antes de se dispersar. A ideia de que viajar nos abre para tantas coisas diferentes, que uma última chance de nos reunirmos com nós mesmos - e com os outros, com quem já estamos familiarizados - é necessária.

No filme, após sua recuperação, Navalny decide voltar à Rússia, onde sabia que muito provavelmente seria preso em uma colônia penal. Taubkin deixou o frio familiar russo para iniciar sua nova vida em um país totalmente desconhecido, do outro lado do mundo.

Ao longo da nossa existência, talvez não tenhamos viagens tão impactantes e transformadoras como essas duas. Mesmo assim, sentar para viajar parece um ótimo hábito a ser incorporado.