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Tomas Rosenfeld

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Escultura social

Tomas Rosenfeld
Imagem: Tomas Rosenfeld

28/09/2021 12h29

Em um exercício hipotético, poderíamos avaliar como nos sentimos após cruzar a porta de saída de um museu, de um teatro ou cinema, ao fechar um livro e apoiá-lo na mesa de cabeceira ou ao pousar os fones de ouvido durante o silêncio ao fim de uma canção. Poderíamos avaliar se os ombros estão relaxados ou os dedos inquietos, se os pés se agitam ou se as bochechas descansam e comparar essas sensações às do momento anterior ao filme, peça ou música.

Mesmo sem nunca termos realizado conscientemente esse exercício, sabemos do efeito que a arte tem sobre nós: uma sensação de paz, transcendência, angústia ou inquietação, para mencionar alguns. Se ela é capaz de movimentar o que está dentro, nossos sentimentos e percepções, por que também não o que está fora, ao relacionar-se com o mundo à nossa volta?

Essa é uma das provocações colocadas pelo trabalho de Joseph Beuys, provavelmente um dos artistas alemães mais importantes do século 20, ainda que pouco conhecido no Brasil. Além de escultor, desenhista, organizador de performances, professor e ativista, foi um dos fundadores do Partido Verde em seu país. Se estivesse vivo, Beuys teria completado cem anos em maio.

Uma das ideias centrais do seu trabalho é o conceito de escultura social. Segundo ele, a missão do artista seria "moldar uma ordem social como uma escultura." Assim, ao invés de esculpir peças de granito ou basalto, caberia aos artistas definir as formas da própria realidade social e política. Caberia à arte criar as condições necessárias para que nosso ser cotidianamente sonolento desperte.

Talvez um dos trabalhos mais interessantes inspirados em Beuys sejam as Stolpersteine de Gunter Demnig. Como muitas palavras em alemão, o título da obra é um nome composto, unindo vocábulos como peças para formar uma extensa sentença sem espaços. A pedra, stein, soma-se ao stolpern, tropeçar.

Os objetos lembram as pessoas perseguidas ou assassinadas pelo regime nazista e são instaladas no último lugar onde indivíduos e famílias escolheram livremente viver, lembrando de um momento em que ainda havia escolhas. A maioria das peças tem inscrita sobre uma camada fina de metal a frase hier wohnte, aqui viveu. Quando a rua onde as vítimas moravam deixou de existir, surgem exceções para outros espaços da vida livre, com frases como: aqui estudou, aqui ensinou, aqui trabalhou.

Tive o prazer de entrevistar Gunter um pouco antes do início da pandemia. Sentados em um café na esquina mais próxima de onde havia ocorrido uma cerimônia de instalação de uma Stolperstein, ele me diz que o maior desafio é não cair na rotina - "o pior que poderia acontecer é eu pensar que estou colocando só mais uma pedra." Estamos em um restaurante cheio e é difícil ouvir sua voz. Demnig tem 72 anos e usa um pequeno brinco dourado na orelha esquerda. As fotos que tirei dele enquanto fixava suas pedras no chão são idênticas às que podem ser encontradas on-line, em que ele está agachado, cercado de baldes com água e cimento, segurando uma espátula e coberto por um chapéu com longas abas.

Gunter Demnig já instalou mais de setenta mil Stolpersteine no mundo, distribuídas em calçamentos de vinte e cinco países. Se para o artista o exercício é não deixar a individualidade - de cada nome e cada pedra - se perder, podemos dizer que o desafio se estende também aos pedestres, em seu encontro diário com as obras.

Deixar que cada peça, esculpida na pedra, instalada na mais ordinárias das superfícies urbanas, nos faça sim lembrar de um genocídio, mas também de um local que abrigou a vida. Deixar espaço para o que emerge desse encontro, que provoca ira, horror e tristeza, mas que faz ainda ver uma ponta da existência, do que um dia foi, do que agora é. Esse pedaço de arte revira internamente e faz querer pensar, lutar e se responsabilizar pelo mundo que temos.