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Sérgio Luciano

Ódio

Aversão ou repugnância que se sente por alguém ou por alguma coisa; antipatia, desprezo, enzona, odiosidade: "Ódio que acaba com a vida não é ódio, é sombra de ódio, é simples e reles antipatia. O verdadeiro é o que passa às outras gerações" (Machado de Assis).

Esse é o significado da palavra ódio, segundo o dicionário Michaelis.

Como eu queria que as palavras que vivem nos discursos inflamados sobre quem pensa diferente, e quem comunga de culturas diferentes, fossem apenas antipatia. Se assim o fosse, uma boa dose de diálogo e escuta talvez fosse suficiente para dar conta de existirmos todas e todos, num mesmo país. Acho.

Mas, seguindo os rumos do escrito de Machado, talvez seja ódio mesmo. Não encontro outra explicação para esse fenômeno que assola nossa sociedade. Para o sentimento que dá forma às palavras - pensadas, escritas e faladas - de desprezo pela vida de quem pensa, ou é, diferente.

Quando o ódio está instaurado e toma conta do ser, já não há espaço para o diálogo. A simples menção ao objeto de ódio, se torna gatilho. Este, se torna a encarnação do mal, a ser extinto da sociedade. E, aí, toda ação se justifica pela eliminação do objeto de ódio.

Objeto. Afinal, aos olhos do ódio, já não existe mais um ser ali. Tão somente algo descartável.

Ódio que é diferente de crítica. A crítica chega como uma refutação ao pensamento de quem é alvo dela. Ou à sua forma de viver a vida, aos seus hábitos, às suas escolhas. No desconforto da crítica, reside ainda uma brecha para o diálogo. Ainda que o diálogo esteja recheado de desconforto de ambas as partes, diametralmente discordantes. Ou, se não um diálogo, ao menos um debate e defesa de ideias. Mesmo que termine com cada um mais convicto de sua própria visão de mundo.

O ódio não espera resposta. Não se abre ao diálogo. Não se abre ao debate. Não discute. O ódio ataca.

Quando não tão grande, ataca para machucar. Para causar dano. O dano, como fim. Dano físico, psicológico, emocional. Ataca pelo prazer em ver dores e lágrimas daquele que se odeia, com a esperança de que seus disparos o afetem. Palavras de baixo calão, piadas, desdém, ataques à reputação, desqualificação. A munição é variada.

Quando de maior intensidade, ataca para matar. Matar. Literalmente. Corpos de mulheres que são alvos de crimes de misoginia. Corpos periféricos alvejados por balas. Crianças, jovens e adultos. Não sou eu que digo, são as estatísticas.

Agora, espero que não me odeie. Imagino que ler menções a morte de mulheres e pessoas da periferia seja um gatilho para alguns. Por exemplo, para pessoas que sentem ódio por quem fala da importância de melhores políticas públicas para reverter estas estatísticas. Ou por quem coloca o dedo na ferida e diz que somos incapazes, enquanto sociedade, de sermos responsivos na mitigação desse tipo de violência.

Nesse momento, imagino que exista um rótulo pronto para quem vos escreve: esquerdista. Para quem tem muito ódio, esquerda maldita. Cada um sabe o nível de ódio que carrega dentro de si. Ódio falado e ódio pensado. Afinal, ainda que os filtros estejam bem mais flexíveis, ainda não falamos tudo que pensamos.

Ah, não pense que eu sou puro. Carrego muitos ódios dentro de mim. Parte da minha vida é compreender de onde meus ódios vêm e como torna-lo em energia para ações de transformação.

Aliás, não quero trazer um discurso amoroso de 'vamos parar de nos odiar agora'. Pelo contrário, meu convite é para olharmos nos olhos de nossos ódios. E, na medida do possível, olhar nos olhos daqueles que odiamos.

Olhar até que esse ódio vire antipatia. Até que a gente consiga se escutar e se olhar nas nossas diferenças. Ou, ao menos, que exista espaço para todos existirem com aquilo que são.

Isso! Espaço para todos existirem com aquilo que são, em respeito às individualidades.

Não sei o seu, mas muito do meu ódio vem do medo.

Começa pelas minhas crenças e valores. Aquelas convicções que me trazem um senso de identidade. Quando elas são desafiadas, sinto medo de que minha identidade esteja ameaçada e que eu perca a liberdade de existir por inteiro. Pessoas que tem ações e discursos que contribuem para reduzir esse senso de identidade, são combustível para meu medo. O mesmo vale para pessoas com ações e discursos que afetam diretamente minha segurança física, trazendo risco de morte.

Quanto maior o risco físico, emocional e psicológico, maior meu medo. Quanto mais próximo da minha pele e entranhas, maior meu medo. E, junto disso, maior meu ódio.

Risco esse que pode ser subjetivo, diga-se de passagem. Basta ver diversas manifestações de ódio ao redor de rótulos como 'direita' e 'esquerda' que, ao serem questionadas, carecem de argumentos e transbordam generalizações, sendo respondidas com mais ódio.

E não podemos deixar de lado os acontecidos do passado. Situações e pessoas que contribuíram para reduzir meu bem-estar, ou que ainda contribuem. Ou a elas atribuímos a exclusiva responsabilidade, ainda que seja questionável, e nos isentemos da corresponsabilidade.

Esses, são potentes combustíveis para o ódio. Ódio que, no fundo, se torna uma eterna ferida em busca de reparação. Às vezes, não há dor do outro que pareça suficiente para reparar. Passamos a viver para destruir o objeto de ódio.

Precisamos olhar nos olhos de nossos ódios. Descobrir o que é tão importante, que eles surgem como melhor estratégia para cuidar. E ter espaços para sustentar o desconforto de nos escutarmos e nos olharmos em nossas diferenças. Olhar até que esse ódio vire antipatia.

Ou a gente aprende a falar sobre nossos ódios, ou vamos continuar sendo consumidos por eles. Individual e coletivamente.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado, a frase citada no início do texto é de Machado de Assis, não José de Alencar. A informação foi corrigida.