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Sérgio Luciano

É tempo de nos armarmos: de compaixão e sabedoria

29/04/2020 10h53

Pensando sobre o que abordar na coluna desta semana, me veio à lembrança o nome de Joana Macy, uma ativista ambiental, autora e estudiosa do budismo, teoria geral dos sistemas e ecologia profunda, que me inspira pela sua visão que busca acolher a complexidade e interconectividade da vida.

Honrando seu nome e seu caminho, e na esperança de que sua voz toque outros corações, assim como também toca o meu, resolvi compartilhar com você sobre a profecia dos Guerreiros de Shambhala, compartilhada com ela na década de 80, pelo seu amigo e professor Choegyal Rinpoche, da comunidade Tashi Jong, no norte da Índia.

Desde o Tibete antigo, há mais de doze séculos, existe uma profecia vinda dos guerreiros Shambhala que ilustra os desafios que enfrentamos na atualidade para realizar o que podemos chamar de Grande Virada: a mudança de uma sociedade centrada no crescimento industrial para uma sociedade que sustenta a vida.

Essa profecia pode ser interpretada de várias maneiras. Alguns retratam a vinda do reino de Shambhala como um evento interno, uma metáfora para a jornada espiritual interior de uma pessoa, independente do mundo ao nosso redor. Outros o apresentam como um evento inteiramente externo que se desdobra independentemente do que escolhemos cultivar dentro de nós mesmos ou de qual seja a nossa participação no mundo ao nosso redor.

Existe também uma terceira interpretação para essa profecia, que fala da necessidade de integrar nossos mundos interno e externo neste momento de crise e oportunidade material e espiritual. Essa última, é aquela que foi compartilhada com Joanna e relato para você abaixo:

"Chegará um tempo em que toda a vida na terra estará em perigo. Grandes poderes bárbaros surgirão. E, embora eles gastem toda a sua riqueza em preparações para aniquilar uns aos outros, eles têm muito em comum: armas de morte e devastação inconcebíveis e uma tecnologia que vai trazer o mundo abaixo em destruição. E será justo nesse momento, quando o futuro de todos os seres estiver pendurado pelo mais frágil dos fios, que o reino de Shambhala aparecerá."

"Não se pode ir até lá: não é um lugar. Ele existe apenas nos corações e mentes dos Guerreiros de Shambhala. Na verdade, sequer é possível reconhecer um Guerreiro de Shambhala ao olhar para ela ou ele, pois eles não usam uniformes, não possuem insígnias. Não têm bandeiras; nem trincheiras as quais escalar para ameaçar os inimigos, ou atrás das quais descansar e se reagrupar. Nem possuem uma sede ou um território próprio. Para sempre e sempre, devem se mover e atravessar o terreno dos poderes bárbaros."

Agora é a hora em que é demandada uma enorme coragem dos Guerreiros de Shambhala. Coragem física e coragem moral, pois eles adentrarão o coração dos poderes bárbaros para desmontar suas armas. Armas em todos os sentidos da palavra: as bombas e armamentos, e os quartéis generais do poder onde as decisões são tomadas.

Ele me falou, "Joanna guarde isso: os Guerreiros de Shambhala sabem que essas armas podem ser desmontadas. Porque elas são mano maya - feitas pela mente. Elas são feitas pela mente humana, e elas podem ser desfeitas pela mente humana."

Os desastres que estão nos ameaçando e se desenrolando, hoje, não foram trazidos por alguma força extraterrestre ou deidade satânica, ou mesmo por um destino imutável e inexorável. Eles surgem de nossas relações, de nossas prioridades, de nossos hábitos. Eles são feitos pela mente humana, e podem ser desfeitos pela mente humana.

Então, é chegado o tempo, ele continuou, de os Guerreiros de Shambhala passarem pelo seu treinamento. Como podem imaginar, perguntei: "e como eles treinam?" Ele respondeu que eles treinam no uso de duas armas (foi este o termo!). Quando indaguei que armas são essas, ele levantou as mãos - tal qual os Lamas segurando os objetos ritualísticos nas grandes Danças de Lamas deste povo - e falou que uma é a compaixão, e a outra é o insight sobre a interdependência radical de todos os fenômenos. "Você precisa de ambas! Uma só não é o suficiente."

Você precisa da compaixão porque ela fornece o combustível, a força motriz para te colocar lá fora, onde você precisa estar, para fazer o que precisa ser feito. E isto consiste, basicamente, em não ter medo do sofrimento do seu mundo. Quando você não teme o sofrimento do seu mundo, nada pode detê-la. Mas a compaixão sozinha, ele disse, é muito quente e pode queimá-la viva. Assim, é necessária a outra arma. É necessária a sabedoria, o insight sobre o mútuo pertencimento de todas as coisas, entrelaçadas como são na teia da vida.

E quando você tem ambas, você sabe que esta não é uma guerra de mocinhos contra bandidos, mas que a linha entre o bem e o mal atravessa a paisagem de todo coração humano. E nós estamos tão entrelaçados na teia da vida que mesmo o menor dos atos feito com clara intenção tem repercussões - por toda essa teia - que nós nem conseguimos ver.

Mas isso por si só, ele disse, é um pouco frio. Então, você precisa do calor da compaixão. E se você observar os monges tibetanos recitando nos pujas, verá suas mãos movimentando-se em mudras. Muito frequentemente, elas estão dançando a interação entre karuna e prajna, compaixão e sabedoria.

Em tempos de crise e transformação, essa profecia se torna um alento, acolhendo as tensões do corpo, aquecendo o coração e lembrando da importância de estarmos conectados nos valores que acreditamos.

Tem interesse em se aprofundar no que foi abordado nessa publicação? Clique aqui para saber mais sobre a Joanna Macy e clique aqui para conhecer sobre "O trabalho que reconecta", abordagem desenvolvida por ela.