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Sérgio Luciano

Que caminhos seguir a partir de pontos de vista divergentes?

22/04/2020 11h29

Como disse na coluna da semana passada, a partir de hoje vou dedicar esse espaço que tenho o privilégio de ocupar para falar sobre futuros possíveis e emergentes a partir da crise revelada pela Covid-19. Sim, revelada. Afinal, não é que essa crise não existia antes. É que ela ainda não tinha transcendido à realidade de milhões de pessoas vivendo em situação de vulnerabilidade e tocado toda a sociedade.

Semana passada eu compartilhava aqui no blog sobre uma cultura vigente de consumo desenfreado e aceleração constante, e seus possíveis impactos em nosso bem-estar. Falava que, nessa cultura, há pouco espaço para um pensamento de suficiência, tendo como mote o crescer a todo custo. E que o 'se esforçar' já é uma simbiose com o 'se forçar'. Fazendo uma analogia literal, 'suar a camisa' é mera obrigação e o 'ir além' significa 'dar o sangue'. Você pode ler o texto clicando aqui.

Cultura vigente que vai muito além de apenas esses dois aspectos que citei e traz diversas outras implicações que rumam no sentido contrário de um viver de mais cuidado, sustentabilidade e inclusão, com nós mesmos, com os outros e com a Terra.

Adicionalmente, tenho percebido que boa parte das tentativas de questionar essa cultura vigente e seus impactos são prontamente questionadas e invalidadas, através de artifícios que acabam bloqueando o debate e reflexão sobre outros caminhos possíveis e que, conscientemente ou não, alimentam a manutenção dessa cultura.

Seja nos comentários aqui no blog, em conversas presenciais e na internet ou em análises escritas por pessoas com diferentes linhas de pensamento, vejo esse bloqueio surgindo recorrentemente em forma de:

- Crítica (às vezes ataque) ao discurso, rotulando-o como uma ideia recheada de romantismo e com total desconexão com a realidade dura e cruel, negando-se a falar sobre algo diferente do que já está estabelecido;

- Ataques pessoais a quem propõe reflexões, rotulando com carimbos ideológicos, expressando meia dúzia de palavras depreciativas ou algum outro tipo de ataque;

- Negação de uma opinião apelando ao discurso de "você não é santo", ou "você é incoerente", "você deveria ser perfeito antes de falar dessa temática".

Mas, Sérgio, por que raios você está falando sobre isso? Até agora só li obviedades!

Falo tudo isso justamente por serem obviedades, para alguns. Mas, talvez, invisíveis para tantos outros.

Se não falamos sobre essas "obviedades" e compreendemos que essas interações são reflexo de uma cultura instaurada que resiste em ser desafiada, dificilmente conseguiremos sair do jogo de culpa e acusação quando escutarmos ou lermos comentários como esses que mencionei. Entraremos em modo de defesa, tentando de qualquer maneira fazer valer nosso "melhor" ponto de vista e silenciar o outro. E, possivelmente, o outro tentará fazer o mesmo.

Por outro lado, lembrar que essas vozes existem e sempre vão existir (eu, pelo menos, não tenho intenção de cercear liberdades de expressão), e encontrarmos maneiras mais empáticas de lidar com elas e acolhê-las, pode nos apoiar a:

- Termos mais resiliência e continuarmos trabalhando para construirmos futuros mais sustentáveis e respeitosos, com cada indivíduo e com a Terra;

- Evitarmos de sermos capturados pela tentação de brigar com aqueles que têm uma narrativa que perpetua essa cultura vigente, a qual queremos transformar;

- Focarmos nas ações que estão ao nosso alcance e sermos estratégicos com dois recursos limitados que temos para atuar nas causas em que acreditamos: tempo e energia de vida.

A escuta e empatia como caminho

Antes de pensarmos na criação desses futuros possíveis, precisamos aprimorar nossa capacidade de sermos empáticos e dialogarmos com o diferente. Se não somos hábeis em escutar todas as vozes e queremos forçar uma transformação a todo custo, possivelmente o efeito será alimentar uma silenciosa polarização que em algum momento futuro vai explodir.

Então, que tal começarmos fortalecendo nossos músculos para vivenciarmos as escutas que nos parecem impossíveis? Deixo abaixo algumas dicas/convites:

1. Tenha em mente que conversar com base no que é o certo a se fazer, sem considerar o que está por trás dessas opiniões, tende a gerar polarização e escalar um conflito. Afinal, quem gosta de escutar incisivamente "que está totalmente errado?"

2. Portanto, foque em compreender por que o caminho defendido pelo outro é importante para ele, que acaba por invalidar caminhos por você propostos.

3. Busque entender o que é importante para o outro e parece não ser cuidado a partir dos caminhos por você propostos. Em outras palavras, compreender por que ele diz "não" para sua proposta.

4. Neste momento, pode ser que já encontrem maior conexão e compreensão, descobrindo que ambos buscam cuidar de necessidades, talvez algumas até iguais, ainda que escolham ações diferentes para atendê-las.

5. Se houver espaço, proponha de pensarem em conjunto sobre possibilidades que cuidariam das necessidades de ambos de forma satisfatória.

Exemplo:

Quando alguém critica e condena a adoção de uma renda básica universal, imagino que seja porque ele não vê como suas necessidades de justiça e reconhecimento serão atendidas, partindo da ideia de que "um monte de gente" vai ganhar dinheiro e se alimentar às custas de seu suor e trabalho.

Ao verificar se essa minha suposição faz sentido, escuto ele dizer que é importante justiça, mas reconhecimento não. Que, na verdade, seria mais um respeito à energia que ele investe para ter o seu dinheiro e que depois é "comido" por impostos. E por isso acredita que cada um deve se virar por si só.

Eu posso mencionar que justiça e respeito também são importantes pra mim. E que, na minha perspectiva, ver pessoas que só conseguem acessar subempregos que sequer garantem uma renda mínima por conta de sua condição social, não cuida dessas necessidades pra mim. E, por esse motivo, vejo na renda básica uma ótima saída.

Veja que esse é apenas um exemplo breve dos infinitos desdobramentos que podem surgir. Talvez, em alguns momentos o diálogo será tenso e intenso. Mas, sem abraçar a complexidade, a tendência é continuarmos vivendo as polaridades e esquecermos o imenso degradê que é o viver em sociedade.

Na próxima semana falarei sobre a importância de compreendermos as responsabilidades e intersecionalidades entre a esfera individual (eu comigo mesmo), relacional (eu com o outro) e sistêmica (meio ambiente, sistemas sociais) na construção de futuros possíveis e emergentes.

Deixo o convite também para visitar esse link aqui e acessar recursos que te apoiem a aprimorar sua capacidade de ser empático e dialogar com o diferente. Tem bastante coisa legal por lá.

Se você gostou do texto, escreve nos comentários o que surgiu para você a partir da leitura. Se não gostou e tem críticas, escreve também. Se for sem ataques, e buscando diálogo sobre distintos pontos de vista, melhor ainda.

Nos vemos na quarta que vem!