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Sandra Caselato

Menina veste rosa e menino veste azul

22/09/2020 04h00

Quando eu era criança adorava "coisas de menina". Tudo cor de rosa, vestidos "de princesa", maquiagens. Mas não tinha muito dessas coisas em casa. Minha mãe não usava maquiagem nem joias, ao contrário de uma de suas amigas antigas, dos tempos de escola, que sempre se arrumava toda, mesmo que fosse para ir somente até o mercado.

As duas fizeram juntas o "Normal", ensino médio da época, que habilitava professores a lecionar no ensino elementar. Se casaram em datas próximas e tiveram uma filha cada uma. Diziam, brincando, que as filhas vieram trocadas, pois quando íamos visitar a amiga da minha mãe, eu, com dois anos ainda, corria para a sua penteadeira, encantada com os perfumes, pó de arroz, batons, pulseiras. A amiga da minha mãe se animava e me deixava brincar com suas coisas "de mulher", pois, para sua tristeza, sua filha não tinha o menor interesse em nada disso.

Ao mesmo tempo, desde muito pequena, eu já era bem ativa. Vivia correndo, subindo nas coisas. Cresci num lugar com muitas árvores e brincava na rua com outras crianças, corria pelo mato, sentindo o vento no rosto e subindo nas árvores.

Conforme fui crescendo, essas duas energias foram se tornando conflituosas dentro de mim. Talvez não porque sejam opostas por si só, mas pela forma como nossa sociedade e cultura costumam separar e delimitar o que é "de menina" e o que é "de menino", o que é feminino e o que é masculino. "Menina veste rosa e menino veste azul".

Menina se comporta, fica quietinha, não corre, não fala alto, não grita. Mesmo que nunca tenha ouvido nada disso por parte dos meus pais, que me deixavam bem livre para ser da maneira que eu quisesse, os estereótipos de gênero presentes em nossa cultura acabavam se infiltrando no meu imaginário infantil.

Os contos de fada, os desenhos animados e programas de TV, a convivência com outras crianças na escola, a maneira que os adultos em volta se comportam, tudo isso nos informa sobre "o lugar das mulheres" e "o lugar dos homens" em nossa sociedade.

O psicólogo suíço Carl Jung, criador da Psicologia Analítica, usou o termo "arquétipo" para se referir a conjuntos de imagens primordiais presentes em nosso imaginário, que ajudam a explicar histórias passadas, vividas por outras gerações e que estão presentes no "inconsciente coletivo". Segundo ele, essas imagens primordiais se originam a partir da repetição de uma mesma experiência por diversas vezes, por pessoas diferentes, no decorrer do tempo e em épocas distintas. Elas fazem parte do inconsciente coletivo, ou seja, estão presentes não somente no meu ou no seu imaginário, mas da grande maioria das pessoas.

As convenções sociais vão se construindo com base nesses arquétipos e ao mesmo tempo os reforçam. Alguns se tornam mais presentes e comuns e outros nem tanto.

O arquétipo da princesa, por exemplo, muito presente no processo de socialização das meninas e mulheres em nossa cultura, serve como modelo de feminilidade, transmitindo valores e mensagens muito específicas de como a mulher deve ser em sua personalidade e aparência, bem como em suas concepções sobre o amor e expectativas amorosas.

Infelizmente, essa figura de princesa vem sendo representada por muito tempo em uma imagem estereotipada, com pouca diversidade, contribuindo para uma construção exagerada de subjetividades que mantém os lugares dominantes tradicionais da princesa e do príncipe, mulher e homem, feminino e masculino, bem distintos um do outro, perpetuando estereótipos de gênero e de posição social.

Enquanto os homens são educados para "se tornar alguém" na vida, as mulheres crescem aprendendo que precisam "encontrar alguém" para casar e poder ser felizes. Para os homens a realização pessoal e profissional vem em primeiro lugar, e para as mulheres o casamento e a família devem vir primeiro. Na época da minha mãe, as mulheres ocupavam majoritariamente posições sociais somente de dona de casa, empregada doméstica, cuidadora de crianças ou professora. Quase não exerciam outras profissões.

Esses padrões de feminilidade também se refletem em insegurança, baixa auto estima e pouca autoconfiança em meninas e mulheres, numa busca inalcançável por corpos ideais ou na submissão e permanência em relacionamentos abusivos.

Cresci assistindo os filmes tradicionais da Disney, ouvindo contos de fada e vendo desenhos animados onde o comum eram donzelas em perigo, frágeis e passivas, esperando o príncipe encantado para salvá-las. Perpetuavam um ideal feminino de fragilidade, passividade e submissão, sem falar do estereótipo de beleza de pele branca e corpo magro.

Isso se tornava um conflito interno para mim, pois não me identificava em nada com essas personagens. Eu era uma menina que também gostava de "vestir azul"! Gostava do desenho animado do lutador de artes marciais "Sawamu, o Demolidor", do piloto de carro de corrida "Speed Racer", todos homens, que com persistência e afinco conseguiam superar suas adversidades.

Como seria uma "princesa que veste azul"? Era raro encontrar um personagem feminino que representasse essas características de ação, força e coragem no imaginário cultural de contos de fada e programas de TV da época.

Nas décadas de 70 e 80 havia apenas 3 programas de que eu me lembro, que fugiam a essa regra e tinham heroínas como protagonistas: os seriados da Mulher Maravilha e da Poderosa Ísis, e o desenho de animação "A Princesa e o Cavaleiro". Adorava todos eles, pois traziam um outro arquétipo feminino, da mulher guerreira, forte e independente, bem diferente da representação mais convencional.

Me alegra muito ver cada vez mais o surgimento nos últimos anos de novas heroínas que rompem este estereótipo com o qual cresci, da princesa passiva e frágil. Pocahontas, Shrek (princesa Fiona), Valente, Zootopia, Frozen, Malévola, Divertidamente, Moana, Mulan, são alguns dos filmes que mostram personagens femininas fortes e cativantes, com papéis ativos na trama, que vivem aventuras, enfrentam perigos e se libertam, cada vez mais, da necessidade de um vínculo amoroso.

A representação das figuras femininas no imaginário infantil vem acompanhando a mudança no papel social das mulheres, que aos poucos vêm ocupando cada vez mais posições de liderança nas mais diversas profissões e focando suas vidas não mais apenas em suas famílias mas também em si mesmas.

Fico aliviada em pensar que a filha da minha amiga que ainda está por nascer e tantas outras crianças que já nasceram ou estão por vir terão outras referências e exemplos de um feminino mais autônomo, independente e potente, com mais possibilidades de desabrochar seu pleno potencial e "vestir" a cor que quiserem!