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Rosana Jatobá

Pandemia mostrou que combustíveis verdes serão protagonistas do futuro

O biocombustível tem variado cardápio de matérias-primas: cana-de-açúcar, milho, soja, amendoim, babaçu, beterraba, canola, dendê, girassol, resíduos agrícolas, mamona, pinhão manso, óleo de palma e trigo - Reuters
O biocombustível tem variado cardápio de matérias-primas: cana-de-açúcar, milho, soja, amendoim, babaçu, beterraba, canola, dendê, girassol, resíduos agrícolas, mamona, pinhão manso, óleo de palma e trigo Imagem: Reuters

28/08/2020 04h00

Tão doce quanto a cana-de-açúcar é o futuro da bioenergia, importante fonte renovável para substituir os combustíveis fósseis. O biocombustível, material que gera energia a partir de biomassa orgânica para uso em motores a combustão interna, tem um variado
cardápio de matérias-primas: cana-de-açúcar, milho, soja, amendoim, babaçu, beterraba, canola, dendê, girassol, resíduos agrícolas, mamona, pinhão manso, óleo de palma e trigo.

O crescimento global do setor é da ordem de 3,5% ano. Em 2019, a produção atingiu um recorde de 162 bilhões de litros de biocombustíveis! Não fosse o coronavírus, que deve provocar uma redução de 20 bilhões de litros (13%) em 2020, o feito se repetiria.
Mas se a Covid-19 trouxe perdas severas para o setor energético em geral, como quedas sucessivas dos preços de mercado, diminuição de quase 50% nas vendas dos combustíveis renováveis, fechamento temporário de plantas processadoras de etanol de milho nos Estados Unidos, cancelamento de contratos de etanol de cana no Brasil e dificuldades de previsibilidade de consumo no pós-crise, a pandemia também mostrou que os combustíveis verdes serão os protagonistas da transição para um modelo econômico de baixo carbono.

Isso porque a humanidade, já preocupada com a mudança climática, agora teme também a poluição, que tem forte impacto sobre a saúde pública. Os biocombustíveis resolvem duas questões de uma só vez. Quanto às emissões de gases de efeito estufa, o etanol, por exemplo, reduz em até 90% o CO2 equivalente quando comparado à gasolina. Em termos de qualidade do ar, eles não emitem material particulado, aquelas partículas finas que provocam doenças respiratórias.

Além disso, o biocombustível é intensivo em mão-de-obra, gerando renda e emprego direto para cerca de 3 milhões de pessoas em todo o mundo. Pode ser usado com as atuais tecnologias de transporte e com a infraestrutura de distribuição existente. A bioenergia pode, ainda, aumentar a produtividade da terra, ao integrar a produção de milho e de cana para a produção de etanol; ou de soja e dendê para o biodiesel. O biodiesel é produzido a partir de óleos vegetais ou de gorduras animais e adicionado ao diesel de petróleo em proporções variáveis.

Não é à toa que diversas organizações, como o IPCC e o Greenpeace, destacam a bioenergia como forte aliada do Acordo de Paris, podendo contribuir com 25% das necessidades de energia até 2100 para manter o aumento da temperatura do planeta abaixo de 2ºC.

O caminho glorioso já está pavimentado. Segundo levantamento feito pela AIE, a bioenergia moderna (etanol e biodiesel) representou 50% do consumo energético global de origem sustentável em 2018, quatro vezes mais que as fontes solar fotovoltaica e eólica combinadas. Em projeção feita pela Agência, a bioenergia deve ser a principal fonte de energia renovável em 2023. Em um mercado avaliado em aproximadamente 170 bilhões de dólares anuais, a produção global de biocombustível deve subir para 222 bilhões de litros por ano até 2025.

Os sinais desta transição energética global estão por toda parte. Enormes refinarias de petróleo nos Estados Unidos estão sendo convertidas em usinas de biocombustíveis. A Phillips 66 é uma delas, cuja refinaria Rodeo, com capacidade de 120 mil barris por dia, se tornará a maior usina do mundo produtora do chamado diesel renovável, bem como de gasolina e combustível de aviação, a partir de óleo de cozinha usado, gorduras e óleo de soja.

A demanda pelo diesel renovável aumenta no chamado Golden State, onde fornecedores de combustíveis compram créditos de produtores de energia limpa para compensar suas emissões, como parte de um programa que visa descarbonizar o transporte da região em 20% até 2030.

Você pode argumentar que os biocombustíveis produzidos a partir de plantações de alimentos geram o velho dilema: comida versus combustível. De fato, os biocombustíveis são amplamente produzidos a partir de safras que também são utilizadas para alimentação humana e animal. É o caso do etanol americano, obtido do milho; do etanol brasileiro, que vem da cana-de-acúcar; e do biodiesel, com 74% oriundo de óleo de soja e de palma. No entanto, há boas perspectivas de mitigar a competição com a produção de alimentos por meio de uma transição para biocombustíveis de segunda geração, a partir de biomassa. São biocombustíveis com base em culturas energéticas de alto rendimento, que tem menor intensidade de GEE (gases de efeito estufa), menor erosão do solo, menor escoamento de nutrientes e maior biodiversidade. Estima-se que só nos Estados Unidos, 1 bilhão de toneladas de biomassa poderia ser produzida para atender a cerca de 30% do consumo de combustível de transporte até 2030.

Você também há de arguir que o boom dos veículos elétricos (em 2019 foram fabricados 4 milhões) pode frustrar a ascensão dos combustíveis verdes. Dificilmente. A participação de carros elétricos na frota global de veículos é de apenas 2,2%. A falta de disponibilidade de infraestrutura de carregamento, problemas de alcance e a escassez de minérios para a produção de baterias, como o lítio e o cobalto, são grandes obstáculos. O cobalto carrega ainda a mancha de ser encontrado em sua maioria no Congo, país politicamente instável e onde a mineração registra exploração de trabalho infantil. Além de ser caríssimo, custando até 35 mil dólares a tonelada.

É notório, portanto, que o setor de bioenergia ganhou musculatura, é altamente organizado e influencia as políticas públicas.
A Agência Internacional de Energia (IEA), acaba de reunir representantes de 20 países com a missão de subsidiar políticas de expansão dos biocombustíveis no mundo. A Plataforma para o Biofuturo criou diretrizes dirigidas a governos, agências de fomento e empresas, para incorporar a produção de biocombustíveis aos planos de recuperação econômica, com especial atenção ao biometano, combustível em forma de gás obtido após o processo de degradação de matéria orgânica, como resíduos da colheita e dejetos de animais. A Biofuturo se pauta em exemplos bem-sucedidos como o da França, que anunciou um pacote de US$ 17 bilhões para o setor aéreo, incorporando metas sustentáveis para ampliar o uso de biocombustíveis em aeronaves. Já a Índia se comprometeu a incluir 20% de etanol na gasolina até 2030. A União Europeia (UE) estabeleceu metas mais ambiciosas no âmbito do Renewable Energy Directive (RED), a política de energias renováveis do bloco. A nova versão do programa, o RED II, estabelece uma meta de energia renovável em toda a UE de 32% até 2030.

A Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), que entrou em vigor este ano no Brasil, é outra fonte inspiradora citada na plataforma.

Falarei sobre o RenovaBio e outros mecanismos de sucesso no próximo artigo. Assim como os entraves para a expansão deste "doce" mercado.