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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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'Sem salvação': mais de 300 entidades pedem fim da reforma do Ensino Médio

Alunos do Colégio Estadual Chico Anysio, em Andaraí, Rio de Janeiro - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Alunos do Colégio Estadual Chico Anysio, em Andaraí, Rio de Janeiro Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

06/03/2023 06h00

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Desintegradora, antipopular, autoritária, perversa, precarizante, privatizante, engodo, antidemocrática, desigual, fragmentadora, desregulamentadora, desescolarizadora, potencialmente catastrófica, sem qualidade. É extensa a lista de apupos que qualificam negativamente a reforma do Ensino Médio na carta aberta, assinada por mais de 300 entidades, que pede a revogação da política pública.

Sindicatos, grupos de pesquisa, associações científicas e de classe do campo educacional defendem que não há remendo possível para a reforma, enquanto seus formuladores falam em "revanchismo". Pressionado, o Ministério da Educação (MEC) monitora a fervura do debate e prepara a convocação de um grupo de discussão sobre o tema.

A carta aberta é capitaneada pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu), grupo de professores e pesquisadores de universidades públicas paulistas. Para Fernando Cássio, professor da UFABC e um dos representantes da Repu, não há radicalismo em se defender o fim do novo Ensino Médio. "A reforma é irreformável", afirma ele. "A revogação é a oportunidade de rediscutir o modelo dessa etapa de ensino e estancar a tragédia, impedindo que se aprofunde o descalabro que está acontecendo em estados como São Paulo".

O "descalabro" envolve uma série de medidas introduzidas pela reforma, que são, na prática, a sua marca registrada: a criação dos chamados "itinerários formativos", grade de matérias ligadas a uma área de interesse do aluno (cuja escolha na prática não estaria disponível à maioria dos estudantes); a adoção de disciplinas optativas vagas, como "Projeto de Vida", em lugar de Filosofia, Sociologia e Artes (com professores sem qualificação, muitas vezes na modalidade online e com propostas curriculares a cargo de fundações e institutos empresariais); aumento da carga horária de 800 para 1000 horas (sem o investimento necessário para bancar o ensino em tempo integral).

"A reforma é excludente em sua gênese", afirma Fernando. "Os itinerários formativos são para poucos e privam os estudantes de conhecimentos básicos". Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE, também signatária da carta), diz que professores de Geografia, História, Sociologia e Língua Portuguesa estão tendo que lecionar conteúdos "totalmente estranhos" às suas formações. "A reforma também descaracteriza a profissão, criando a figura da pessoa de notório saber, aumentando a terceirização e elevando a contratação temporária de docentes".

O "caráter antidemocrático" da reforma é outra crítica. Ela foi apresentada em 2016 pelo governo Michel Temer na forma de Medida Provisória (MP), artifício considerado "autoritário" por "abortar o (ainda que insuficiente) processo de discussão sobre o Ensino Médio iniciado na Câmara dos Deputados em 2012", conforme a carta aberta. Convertido na Lei 13.415/2017, o novo Ensino Médio vem sendo implementado em diferentes ritmos pelos governos estaduais desde o ano passado.

"Revanchismo", diz ex-secretária de Educação Básica do MEC

Em resposta às críticas, formuladores da reforma têm saído em sua defesa. Para Katia Smole, diretora do Instituto Reúna e ex-secretária de Educação Básica do MEC durante o governo Temer, o movimento pela revogação é "revanchista". "Todas as diretrizes educacionais para o Ensino Médio adotadas desde o governo FHC, passando pelos governos Lula e Dilma, foram incorporadas por esse texto final [da reforma]".

Katia ainda defende a adoção das disciplinas optativas. Algumas têm chamado a atenção pelo exotismo, como as que propõem produção de queijo ou sabonete líquido. "A ideia de ensinar a fabricar o sabonete, por exemplo, pode trazer noções de Química e de Biologia, passando por outros conhecimentos gerais", afirma. "O que não significa que não deve haver uma supervisão maior das secretarias de Educação sobre as propostas apresentadas em cada escola. É muito difícil julgar uma eletiva assim apenas pelo tema apresentado, sem ver de perto qual é a proposta pedagógica oferecida."

Ela também refuta a ideia de que a reforma estaria aprofundando ainda mais as desigualdades. "As escolas eram todas iguais antes da aprovação da reforma? Não, não eram. Então, é evidente que haveria diferenças entre elas. O que precisamos é de coordenação do MEC, melhoria da formação técnica das Secretarias de Educação e uma supervisão maior das redes de ensino".

A maioria dos estudos acadêmicos sobre a reforma, porém, tem enfatizado o aumento das disparidades. Uma nota técnica da Repu avalia a expansão do Novo Ensino Médio em São Paulo evidenciando a disparidade na oferta de itinerários, falta de professores e expansão das aulas online.

MEC prepara grupo de discussão sobre o tema

Com o debate em temperatura elevada, é natural que as atenções se voltem para o MEC. A coluna apurou que a pasta ainda não tem uma posição definida, e que o ministro Camilo Santana (PT) pediu à equipe agilidade na redação de uma portaria para nomear um grupo de discussão sobre o tema. Na Folha de São Paulo, o jornalista Paulo Saldaña publicou que a gestão atual vê "falhas na implementação" e que pretende "revisar", mas não revogar, a reforma.

Katia Smole, do Reúna, elogia a conciliação. "O ministro tem tido um comportamento responsável em admitir que há problemas e coisas que podem ser aperfeiçoadas em vez de simplesmente descartar tudo, como esse movimento está pressionando". Uma eventual revogação, segundo ela, provocaria um "hiato jurídico enorme". "A reforma não pode ser revogada num simples decreto do ministro. Precisa mudar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), passar pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e ter alguma coisa para pôr no lugar. Não tem o que pôr no lugar".

Fernando, da Repu, rebate citando outros ministérios do governo Lula - como Saúde, Direitos Humanos e Meio Ambiente - que vêm adotando medidas de revisão e reversão de políticas adotadas nas gestões Temer e Jair Bolsonaro. "Com o vencimento do atual Plano Nacional de Educação (PNE), previsto para 2024, nós já temos um encontro marcado com a revisão das políticas públicas educacionais, por meio das Conferências Nacionais de Educação. O momento de revogar a reforma e deflagrar um debate nacional para elaborar um novo modelo de Ensino Médio consensual é agora", diz. Sem mencionar as Conferências, Heleno, da CNTE, defende a "instituição de um grupo de trabalho com governo, Congresso e sociedade para construir coletivamente as medidas reformuladoras".

Colaborou Gabriel Costa