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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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Como as cotas em universidades ajudam também a educação básica

Depois dos alunos da UnB (Universidade de Brasília), os estudantes da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) decidiram montar uma página com as frases racistas que já ouviram para tentar combater a discriminação racial no ambiente universitário. As páginas foram inspiradas no projeto "I, Too, Am Harvard" ("Eu também sou Harvard"), desenvolvido por alunos neros da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos - Reprodução/ahbrancodaumtempoufjf.tumblr.com
Depois dos alunos da UnB (Universidade de Brasília), os estudantes da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) decidiram montar uma página com as frases racistas que já ouviram para tentar combater a discriminação racial no ambiente universitário. As páginas foram inspiradas no projeto "I, Too, Am Harvard" ("Eu também sou Harvard"), desenvolvido por alunos neros da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos Imagem: Reprodução/ahbrancodaumtempoufjf.tumblr.com

29/08/2022 11h03

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Exatamente hoje, 29 de agosto, a Lei de Cotas completa 10 anos com um legado de intensas transformações no ensino superior. Ao longo dos anos 1990, alunos pretos, pardos e indígenas representavam em torno de 15% do total de estudantes em universidades. Em 2019, a proporção saltou para 31%. Houve ainda mudanças no perfil socioeconômico - os 20% mais pobres da população passam de 1,1% para 6% entre 1992 e 2019 - e na porcentagem de egressos da escola pública - que vão de 55% para 64% a partir da aprovação da Lei. Os dados são da tese de doutorado de Adriano Senkevics, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

As conquistas não se esgotam no acesso à faculdade. "Avançamos muito na compreensão das desigualdades educacionais que ainda persistem", afirma a antropóloga Alessandra Tavares, coordenadora e formadora de professores na Comunidade Educativa Cedac. "A Lei de Cotas foi um dos fatores que estimulou a produção de mais estudos e indicadores. Ficamos sabendo, por exemplo, que em 2020, 71,7% dos jovens que abandonaram a escola eram negros. Antes, não tínhamos essa clareza."

Alessandra defende que a produção de indicadores ajuda a trazer a questão racial para a educação básica. Constrói-se um outro olhar sobre raça, em que os números ajudam a mostrar que existe, sim, racismo. "Há hoje uma percepção disseminada de que a discriminação racial impacta na vida das pessoas". Isso, por sua vez, exige das escolas que revejam a composição racial da equipe docente e de alunos. Não apenas a diversidade é fundamental, mas também que pretos e pardos estejam em posição de liderança. "A pauta da educação antirracista que veio para ficar", afirma.

O aumento no número de diplomados negros têm força ainda mais evidente, com efeito direto na representatividade. "Crianças e jovens pretos e pardos não se veem apenas com uma bola de futebol no pé. As políticas de ação afirmativa têm sido fundamentais para ampliar a possibilidades de sonhos. Estudantes negros podem incluir o ensino superior como projeto de vida", diz.

O ponto também foi reforçado pelo economista Marcelo Paixão, professor da Universidade do Texas, para quem o grande impacto da Lei de Cotas foi "civilizatório". "Ser atendido por um médico negro, bem como dar entrevista para um jornalista negro, vai muito além de se a distribuição de renda aumentou ou diminuiu. Ela diz respeito a uma dimensão estrutural imaterial", afirmou em entrevista à Folha de S. Paulo.

Avanços ainda insuficientes

Apesar das conquistas, Alessandra alerta para o risco de que se naturalize a presença do atual contingente de pretos e pardos em universidades como "suficiente". Não é, porque os números ainda estão longe de chegar à participação relativa de negros no conjunto da população (em torno de 56%, segundo o IBGE). "Não houve uma entrada massiva de pretos e pardos. As ações afirmativas vão promovendo aos poucos a transformação. Ainda não superamos as desigualdades", afirma.

A observação dialoga com um achado importante da tese de doutorado de Senkevics. Observando que os indicadores socioeconômicos e de composição racial se encontram estagnados desde 2015, o pesquisador do INEP vê certo esgotamento da democratização do acesso ao ensino superior. É preciso o desenho de novas políticas e o reforço de outras que foram desmontadas - como as ações voltadas à permanência dos estudantes. Em um contexto de escassez de auxílio para alimentação, transporte e moradia, são os mais vulneráveis que tem maior probabilidade de abandonar os estudos.

Alessandra defende, ainda, a ampliação do escopo das cotas. Para a antropóloga, a revisão da Lei deve prever reserva de vagas também entre gestores e corpo docente das universidades. "Temos muito para avançar para que as políticas de ações afirmativas possam deixar de existir", afirma, com a ressalva de que o cenário não é propício para tentar alterações na legislação. "No contexto político atual, é mais prudente propor continuidade. Não temos condições políticas positivas para revisar com um viés de melhora", finaliza.