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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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Bolsonarista, Assembleia de Deus associa homossexualidade a Satanás

Assembleia de Deus, no Acre - Reprodução/Redes sociais
Assembleia de Deus, no Acre Imagem: Reprodução/Redes sociais

Colunista do UOL

18/08/2022 10h49

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Maior denominação evangélica do Brasil, a Assembleia de Deus escolheu a dedo para o período eleitoral o livro das escolas dominicais, reuniões de estudo que recebem milhões de fiéis toda semana. Trata-se de "Os Ataques Contra a Igreja de Cristo", de autoria do pastor José Gonçalves.

A imagem de capa - um guerreiro de armadura que com seu escudo se protege de flechas de fogo - ilustra uma igreja, nas palavras do autor, "sob ataque de Satanás".

Gonçalves sustenta que o diabo, nos tempos atuais, executa suas "nefastas atividades" de forma "sutil e perspicaz", no que seria uma "guerra cultural, moral e espiritual". Entre as sutilezas do Maligno estariam a imoralidade sexual - incluída a homossexualidade -, as ideologias "contrárias à família" - como a suposta "ideologia de gênero" -, o marxismo e o neomarxismo gramsciano, classificados como "ameaça vermelha".

As "sutilezas de Satanás" espelham diversos pontos da chamada "pauta de costumes" defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). O autor sustenta que o posicionamento está em linha com o "código doutrinário" da Assembleia de Deus.

'Os Ataques Contra a Igreja de Cristo', de autoria do pastor José Gonçalves - Reprodução - Reprodução
'Os Ataques Contra a Igreja de Cristo', de autoria do pastor José Gonçalves
Imagem: Reprodução

Mas diversos registros reforçam que a igreja se engajou na campanha pela reeleição. Em abril, José Wellington Costa Junior, presidente da CGADB (Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil), declarou apoio a Bolsonaro. Em maio, voltou à carga ao chamar Lula de "laço do diabo". Em agosto, em reunião com o próprio Bolsonaro, disse que vai "em busca de votos" e "multiplicar votos" para o presidente. A Lei Eleitoral proíbe propaganda política em templos.

Nas redes sociais, há exemplos semelhantes em perfis dos próprios pastores assembleianos. No último domingo (14), Eduardo Lopes, pastor presidente da Assembleia de Deus Ministério Belém em Três Lagoas (MS), chamou a esquerda de "lixo", classificou sua suposta ideologia de "enxurrada de pecados" e afirmou que "não dá para aceitar um crente votar em partidos de esquerda".

Orientação aos pastores, ideias distorcidas

A coluna obteve, ainda, uma orientação da CGADB enviada nesta semana aos pastores. Sob o título de "Somos Contra", a apresentação de 26 slides enumera teses em desacordo com os posicionamentos da Assembleia. Entre elas: "desconstrução da família tradicional", "erotização das crianças", "ideologia de gênero", "aborto", "aparelhamento da educação à ideologia marxista". A coluna apurou que esse seria o posicionamento oficial da CGADB, maior convenção de Assembleias de Deus do país.

"Na realidade, essas não são sequer pautas de esquerda. Ninguém poderia ser, por exemplo, a favor da erotização de crianças", afirma Vitor Marchetti, professor de Ciência Política da UFABC. "O que esse discurso faz é demonizar bandeiras feministas e LGBTQIA+ apresentando-as de forma distorcida, como se fossem ameaças à sociedade."

Os termos são semelhantes aos usados pelos bolsonaristas. Em julho, durante a Marcha para Jesus, tradicional evento evangélico nas ruas de São Paulo, Bolsonaro evocou a "guerra do bem contra o mal" e condenou "as dores do socialismo". Abordou, como de praxe, a pauta de costumes: "Temos uma posição aqui: somos contra o aborto, contra a ideologia de gênero, contra a liberação das drogas e somos defensores da família brasileira."

A coluna conversou com dois pastores evangélicos que se autodenominam progressistas. Ambos veem ligação entre a escolha do livro, objeto de estudo nas escolas dominicais entre julho e o domingo anterior à eleição, e a intenção de influenciar o voto dos fiéis. "A escola bíblica dominical é um momento de doutrinação mais importante do que os próprios cultos", afirma José Barbosa Junior, teólogo e pastor da Comunidade Batista do Caminho, em Campina Grande (PB). "Algo entre 5 e 7 milhões de eleitores terão acesso a esse material". "É uma ação obviamente oportunista", diz Ricardo Gondim Rodrigues, teólogo e pastor da Igreja Betesda, em São Paulo (SP). "Dialoga com a ideia reacionária de que a melhoria do Brasil não virá pela justiça social, mas pelo moralismo hipócrita".

Barbosa Junior aponta uma "leitura literalista" e "seletiva" da Bíblia. "Literalista porque desconsidera o contexto histórico e sociológico de um livro escrito há mais de 2 mil anos, apoiando-se inclusive em erros de tradução para condenar a homossexualidade. Seletiva porque não fala nada sobre aspectos como desapego aos bens materiais ou distribuição de renda", diz. "O material não contempla, por exemplo, a denúncia do machismo e da misoginia como pecados. Uma nação que queira ter futuro civilizatório precisa pensar nessas questões", completa Gondim.

Na prática da escola dominical há pouco espaço para fugir do roteiro. A obra de Gonçalves é completada por um "Livro do Professor", um pequeno caderno de orientações aos educadores. O formato é típico de livro didático escolar, com textos microeditados, palavras-chave, sinopses (como "o relacionamento pré-conjugal, extraconjugal e homossexual é uma prática que distorce o propósito de Deus") e até questionários. Por exemplo, a pergunta "Como o cristão compreende a homossexualidade?" recebe a seguinte resposta: "Os cristãos conservadores, que têm na Bíblia sua única regra de fé, compreendem a homossexualidade como um comportamento adquirido e não como um determinismo biológico."

Desde julho a coluna tenta contato com José Gonçalves e com a CPAD, editora responsável pelas obras da escola bíblica dominical. O autor nunca respondeu aos e-mails e a gerência de comunicação da editora interrompeu a comunicação pelo WhatsApp ao ser informada sobre o tema da reportagem. A assessoria da presidência da CGADB também foi procurada, mas não retornou os pedidos de contato. Caso haja alguma resposta da Assembleia de Deus, a reportagem será atualizada.