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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os pais nunca morrem: sobrevivem em nós

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

14/08/2022 06h00

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"Como é que faz pra morrer?", perguntou meu pai à médica ou à enfermeira, já não me lembro e nem importa, naquele interminável calvário hospitalar. Foi a primeira, única e última vez que o vi desistir de alguma coisa. E foi preciso muito pra dobrá-lo: sete meses de internação, trocentas baterias de químio, incontáveis punções de liquor, dezenas de litros de sangue transfundido e um fracassado transplante de medula óssea que a oncologista, na falta de tato característica de certos profissionais da saúde, classificou como "mais fraco que um chazinho". Fato é que menos de 24 horas depois dessa conversa, o velho encontrou um jeito de chegar lá. Morreu às 11h de 23 de março de 2017.

Outro dia minha mãe me perguntou a data da morte do pai — era a senha do cartão de crédito, evitem fazer isso. Tive dificuldade de lembrar. Achei estranho, mas li como um sinal de que aquelas cenas de hospital, repetidas tantas vezes em vigília e em sonho, estavam livres para seguir seu caminho. Ouvi de fonte segura (sempre quis usar essa expressão) que ninguém mais sofre dor quando morre de câncer. Faltou combinar com a leucemia do meu pai que, antes de o levar, humilhou. Descontrole das funções vitais mais elementares, insuficiência respiratória, delírios e, sim, muita dor. Desnecessário isso daí, hein, Deus. Espero que a essa altura, mais de 5 anos depois, vocês já estejam de boas e rindo das piadas meio obscenas que ele contava. Ouvi de fonte segura que o senhor é fã do gênero.

Mas hoje é dia dos pais e não convém arranjar treta com o Altíssimo, que é justamente com o pai de todos. Vou falar do meu e da saudade que, dizem, vai se transformando em outra coisa conforme o tempo passa. Há um lado aflitivo nisso. As imagens já não são tão nítidas, detalhes das histórias vão sumindo e sobretudo a gente vai esquecendo como era a presença cotidiana daquele que se foi. Vai indo embora aquela comichão de passar a mão no telefone (éramos velhos) toda vez que uma equipe fazia bobagem no pit stop na F1, quando tinha promoção de cápsula de café no Pão de Açúcar ou quando ele postava em seu "brog do Zé" algum texto defendendo o PT. A nota de rodapé é que meu pai foi possivelmente o único ser humano que virou petista não apenas depois do mensalão, mas por causa do mensalão. Uma personagem complexa, digamos assim.

A gente vai substituindo esses momentos, encontrando novos interlocutores, mas sempre fica aquela sensação melancólica de que não é, e nunca vai ser, a mesma coisa. Mas acontece um outro processo ainda mais poderoso no sentido inverso. Num certo sentido, a gente se torna a pessoa que partiu.

Claro que dependendo do defunto nem sempre é um bom negócio. Mas o lance é que algumas características que eu admirava demais no meu pai — o bom humor, a generosidade, a garra de lidar com a adversidade, um interesse pela história das pessoas, qualquer pessoa — afloram mais em mim depois que ele morreu.

Os anglo-saxões captam esse sentido em uma expressão recorrente em obituários. "John is survived by his two sons", que por aqui ganhou tradução burocrática de "John deixa dois filhos". Penso que uma versão quase literal seria mais verdadeira: John sobrevive em seus dois filhos, uma frase que partilha a ideia de que o legado de alguém vive nos outros.

Nossas biografias incorporam atravessamentos de outras pessoas. Se for um pai, nem se fala. Se o pai for bom, vixe. Sendo precisamente o meu caso, o mínimo que posso fazer é manter vivas certas tradições. Isso não é muito difícil porque 90% das piadas que eu conheço foi ele que me contou. Estou trabalhando agora com umas esquetes mais elaboradas. Todo dia de escola, meu pai acordava a mim e meus irmãos com doçura, dizendo: "Pessoal, são seis da manhã, mas não se preocupem, vocês podem descansar um pouco mais porque o papai ainda vai contar de mil até zero". Antes que a regressiva chegasse a 998, um tapão fazia estalar o interruptor do quarto, acendendo todas as luzes. "Ops! Falhou a contagem", ele ria, gostosamente.