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Bolsa para quem acolher população de rua é 'amadorismo', diz especialista
Na última quinta-feira (30), a prefeitura de São Paulo aprovou uma lei que prevê pagar mensalidade para quem se dispuser a acolher pessoas em situação de rua. Batizada de Auxílio Reencontro, a bolsa é descrita pelo prefeito Ricardo Nunes como uma forma "digna e autônoma" de "ampliar a proteção social e fortalecer estratégias para a saída qualificada da situação de rua e favorecer o retorno ao convívio familiar e comunitário". Movimentos sociais e especialistas discordam. Apontam o auxílio como uma saída apressada, autoritária e sem embasamento, um retrocesso em relação às políticas públicas sobre o tema.
"É um amadorismo perigoso. O acolhimento é um processo complexo, que necessita de uma equipe interdisciplinar e respeito às boas práticas internacionais", diz a advogada Luciana Ribas, representante do Fórum da Cidade de São Paulo em Defesa da População em Situação de Rua. Autora de tese sobre populações de rua e direitos humanos, Luciana afirma que a proposta não foi discutida com os vereadores ou com a sociedade civil.
"Três conselhos participativos municipais, que devem criar diretrizes para políticas dessa temática, foram ignorados. E a prefeitura não apresentou estudo ou pesquisa para referendar a medida." O pároco Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua, confirma a informação. "Foi algo imposto de cima para baixo, sem nenhum diálogo com os envolvidos".
Luciana diz que falou-se em uma quantia entre R$ 300 e R$ 350 por pessoa acolhida. Pela lei promulgada, o valor do auxílio ainda depende de regulamentação. Ele foi aprovado com um conjunto de outras medidas de acolhimento e segurança alimentar para a população em situação de rua. Enviado à Câmara pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) na noite da última segunda-feira (27), o projeto tramitou em tempo recorde: foi aprovado em votação no plenário na terça (29) e sancionado como lei na quinta (30).
"Supostamente, seria um substitutivo a outro projeto que tramita há mais de um ano. Mas o conteúdo é completamente diferente, o tal auxílio é um ?jabuti?", diz Luciana, usando o jargão político para a inserção de propostas sem relação com o tema original da proposta legislativa.
A ideia de uma bolsa para quem receber uma pessoa em situação de rua contraria as políticas bem-sucedidas na área. Segundo Luciana, o "reencontro" com parentes desconsidera que mais de um terço dos que deixaram seus lares o fizeram por desavenças familiares - dados do Censo da População de Rua de 2021. Também é polêmica a concessão de um benefício indireto ao público-alvo. "Nas conversas que tenho com os irmãos de rua, o pedido é de uma renda mínima para que eles e elas possam se reerguer", afirma Júlio. "Por que não remunerar diretamente os indivíduos em situação de rua? O pagamento é assistencialista e parte da concepção que eles não têm condição de gerir seu dinheiro, o que não é verdade", diz Luciana. Um terceiro ponto de crítica é a dificuldade de fiscalização das novas moradias: como isso seria feito? "Mesmo os albergues da prefeitura se encontram em situação precária. O relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara encontrou animais no local de alimentação, comida estragada, vazamentos de gás, percevejos e pulgas, violência e descaso dos funcionários", enumera a advogada.
A Prefeitura não apresentou nenhuma pesquisa que ampare a adoção da medida. Luciana afirma que modelos semelhantes nos Estados Unidos têm denúncias de maus tratos e de desvio de verba. A questão financeira também preocupa por aqui. "Sempre que se propõe algo para a população de rua, o poder público fala em falta de recursos. De onde virá esse dinheiro agora?", questiona.
O que deveria ser feito?
Em São Paulo, o Censo da População de Rua de 2021 contou 31.884 pessoas nessa condição - aumento de 30% em relação a 2019. Apontando subnotificação, movimentos sociais estimam em mais de 40 mil o total de pessoas em situação de rua na capital paulista. Luciana explica que os bons exemplos internacionais se baseiam na política housing first - moradia primeiro, em português. "É preciso superar o etapismo, que estabelece primeiro o acolhimento, depois o emprego e por fim uma moradia. Ter um lar permanente costuma ser uma condição para que a pessoa ajuste sua vida."
A nova lei propõe uma medida nesse sentido - e erra de novo, na opinião da advogada. A chamada "Vila Reencontro" prevê a implantação de 350 apartamentos de 18 m² no Bom Retiro, com capacidade para 1.200 pessoas. "O projeto de lei fala em moradia transitória e não permanente. E nos casos de sucesso do exterior, há a preocupação em não estigmatizar esse tipo de empreendimento, garantindo a presença de outras categorias de trabalhadores no mesmo prédio. A medida não cita nada a esse respeito", argumenta a advogada.
Prefeitura diz que benefício é "financeiro e socioemocional"
Procurada pela coluna, a prefeitura se manifestou por meio de nota do secretário de Projetos Estratégicos, Alexis Vargas. Ele afirma que o Auxílio Reencontro não é apenas um benefício financeiro, mas também "apoio socioemocional".
"Tanto a pessoa em situação de rua quanto o familiar receberão todo o suporte por meio de atendimentos com psicólogos e assistentes sociais para que o vínculo afetivo seja restabelecido." Alexis diz que o projeto nasceu por ideia do próprio prefeito Ricardo Nunes, que vê o vínculo familiar como "um potente instrumento de resgate de autonomia da população em situação de rua". A nota não apresenta estudos ou pesquisas de referência. Quanto às pessoas que saem de casa por conflitos familiares, o secretário afirma que, se 31% dos entrevistados apontaram essa motivação, significa que "69% não declararam o problema".
Ele aponta que "60% dos entrevistados declararam manter contato com algum familiar que não está em situação de rua". Quanto à rápida tramitação do projeto, Alexis reforça a defesa de que se trata de um substitutivo. "Na verdade, já estamos atrasados. O projeto vem sendo discutido há mais de 6 meses e passou por diversas audiências de comissões na Câmara."
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