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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Esmola não resolve nada, mas é fundamental

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

14/04/2022 06h00

A cena daquele almoço de terça-feira vem se tornando tristemente comum mesmo em ambientes segregados da pobreza, como era o caso da praça de alimentação num shopping da av. Paulista. Uma senhora baixinha de cabelos grisalhos, saia longa e camiseta cinza perambula por entre as mesas. A máscara evidencia a respiração arfante. De longe não é possível ver o que fala, mas o fato é que se dirige às pessoas que comem no local. Uma dúzia delas, que respondem com um meneio em sinal negativo.

Passam-se cerca de 15 minutos até que uma moça indica para o self-service de um restaurante. R$ 8,19 por quilo ou à vontade por R$ 34,90, diz a faixa promocional. A senhora se serve e, diante do caixa, aponta para a jovem sentada a alguns metros de distância.

Em sua origem grega, a palavra esmola remete a "dom caritativo", "compaixão". Para a tradição cristã, sinaliza a substância da vida espiritual, mas no mundo terreno pouco a pouco passou a ter significado pejorativo. "É direito, não é esmola", costuma-se dizer quando uma ajuda é considerada desprezível.

São numerosos os opositores da prática de ajudar o outro com dinheiro, roupas ou comida. Experimente digitar no Google "Dê esmola" e clique em imagens. Promissão, Foz do Iguaçu, Caçador, Lavras, Navegantes, Joinville, Bom Despacho, Avaré: são inúmeras as prefeituras que promoveram ou promovem ações de "conscientização" contra esmolas. Com ligeiras variações, os argumentos centrais são os mesmos: incentiva as pessoas em situação de rua a permanecer nessa situação; alimenta vícios; degrada o espaço público; gera exploração de adolescentes e vulneráveis. Contra essa lista de mazelas, o poder público exorta os munícipes a "dar oportunidades reais", seja lá o que isso signifique, ou ligar para a assistência social do município.

Vende-se a promessa de que o Estado consegue dar conta da questão. É um equívoco. Na cidade de São Paulo, o mais recente Censo da População em Situação de Rua conta 25 mil vagas de acolhimento, já incluídas as mais de 6 mil emergenciais, para 31 mil pessoas vivendo ao relento na capital.

A mesma pesquisa diz que 92% dos entrevistados sairia das ruas se pudesse. Não têm qualquer cabimento lendas urbanas de tipo "conheço um sujeito que para o Honda Civic a um quarteirão de distância, se maqueia e veste roupas rasgadas para simular pobreza e chega a tirar 10 mil reais por mês". Nessa história, a única coisa real é a crença de que pedir esmola é um grande negócio. Como diz o padre Júlio Lancellotti, ninguém se sustenta pedindo dinheiro na rua - o Censo indica que a maioria trabalha de alguma forma.

Em "Mágico de Oz", o rap, não o filme, os Racionais MCs rezam para "aquele moleque, que sobrevive como manda o dia a dia" e que pede "qualquer trocado, qualquer moeda, me ajuda, tio". Comovido, o narrador não nega uma moeda. Descreve: "tirei um sorriso ingênuo, fiquei um terço feliz". E provoca: "o que é que pega se eu errei?".

A esmola é esse momento de reconhecimento do outro como um igual, artigo raro para quem vive em situação de rua. A compreensão que, em um país desigual como o nosso, às vezes apenas o acaso separa quem recebe de quem doa. Ainda que um efêmero e temporário, é uma expressão de amor ativo, porque não se resume a boas intenções. A esmola se concretiza numa ajuda concreta e intencional a alguém que, naquele momento, tem uma necessidade urgente que não consegue resolver por conta própria.

Dar ou não dar? A esmola é uma decisão de foro íntimo e cada um tem suas próprias estratégias de decisão. Lancellotti defende uma definição pelo estado de presença. O que seus olhos vêem naquele momento? "Há pessoas que te pedem e entra no coração como um punhal". No fundo, é essa conexão com o que há de mais humano em nós que motiva a doação.

Com a mão espalmada, a moça indicou à senhora que esperasse. Levantou-se, foi ao caixa e acertou a conta de um prato provavelmente menor do que o apetite: uma porção de macarrão ao alho e óleo, dois pedaços de ravioli ao sugo, banana à milanesa, abóbora grelhada e suco de laranja. A senhora agradeceu com a cabeça , sentou-se sozinha e devorou tudo em 5 minutos.