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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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Educação: entenda como funciona o orçamento e onde poderia estar desvio

O Ministro da Educação, Milton Ribeiro - Luis Fortes/Ministério da Educação
O Ministro da Educação, Milton Ribeiro Imagem: Luis Fortes/Ministério da Educação

25/03/2022 06h00

"Porque a minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar". Gravada em áudio e divulgada originalmente pelo jornalista Paulo Saldaña, da Folha de S. Paulo, a afirmação do ministro Milton Ribeiro — que, segundo o próprio, estaria cumprindo "um pedido especial do presidente da República" — é um elemento contundente nas denúncias sobre sua gestão no Ministério da Educação (MEC). As suspeitas incluem a existência de um gabinete paralelo, composto por pastores com acesso à agenda ministerial e à liberação de recursos, demandas de "apoio" de prefeitos na construção de igrejas e pedidos de propina — o caso mais notório envolve a solicitação de 1 quilo de ouro para que o pastor Arilton Moura conseguisse verba junto ao MEC para a construção de escolas e creches em Luís Domingues (MA).

As revelações lançam dúvidas quanto ao orçamento da educação e à fiscalização do empenho de recursos. O assunto é mesmo complexo — a começar pelo FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. O epicentro das denúncias de corrupção não é um fundo no sentido econômico, mas uma autarquia ligada ao MEC, responsável pela execução dos recursos da área. Boa parte do repasse de verbas do governo federal para estados e municípios passa pelo FNDE. De certa forma, o acesso privilegiado ao Fundo significa ter as chaves do cofre.

Mas é só o começo da história. As regras para alocação de recursos na educação e sua fiscalização evoluíram muito nas últimas décadas, reduzindo as possibilidades de corrupção. Ainda assim, supostos desvios como os recém-denunciados podem ocorrer. O principal foco são as chamadas "transferências voluntárias", convênios estabelecidos entre a União e estados e municípios.

"As transferências voluntárias nascem de projetos enviados ao FNDE para demandas como construção de creches e escolas, inclusão de alunos e formação de professores", afirma Rubens Barbosa de Camargo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca). "Os projetos precisam passar pelo crivo da equipe técnica do Fundo, mas a alocação efetiva depende de uma decisão política do responsável pelo setor."

Em termos percentuais, as transferências voluntárias representam apenas 1% do orçamento da educação. Mas, em números absolutos, o montante é gigantesco: chega a 2,9 bilhões de reais, nos cálculos do especialista em financiamento da educação Thiago Alves, professor do programa de pós graduação em Administração na Universidade Federal de Goiás (UFG). Com a consultoria de Alves, a coluna preparou nove perguntas e respostas para explicar melhor o orçamento da educação brasileira e os caminhos impróprios por onde esse recurso ainda pode escorrer.

1- De onde vem o dinheiro da educação?

São duas fontes principais. A primeira — que nas contas de Tiago Alves representa 92,5% do total — são as vinculações constitucionais e o Fundeb. No caso da vinculação, estados e municípios são obrigados por lei a destinar pelo menos 25% de suas receitas à educação. Quanto ao Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), trata-se de uma cesta de 13 impostos, usados sobretudo para custear os salários de professores e funcionários. O Fundo ainda prevê uma complementação da União para os estados que não atingiram o valor mínimo investido por aluno anualmente. Para 2022, o patamar foi estipulado em 4677 reais — algo como 389 reais por mês por aluno, muito menos do que as mensalidades cobradas por instituições particulares.

A segunda fonte de recursos é o salário-educação, que equivale aos 7,5% restantes do orçamento. Descontado na folha de pagamento das empresas, o salário-educação tem três destinações: dos 7,5%, 4,5% são repassados para estados e municípios. Outros 2% financiam programas específicos do FNDE: alimentação escolar, transporte e dinheiro direto na escola, um auxílio para despesas de pequena monta, como consertos de mobiliário. Sobra 1%, reunido sob a denominação "recursos da cota federal do salário-educação para outras ações". Em números absolutos, são 2,9 bilhões, que vão reaparecer na história logo adiante.

2- Por que costuma-se dizer que a educação é uma área com pouco espaço para a corrupção?

Porque boa parte dos recursos já é "carimbada", ou seja, com fonte de verba, quantidade total e alocação determinadas por lei. O repasse do Fundeb, por exemplo, leva em conta o valor por aluno e o total de matrículas da rede estadual registrado no Censo Escolar do ano anterior. Há um valor específico "por cabeça", sendo que pelo menos 60% deve ser usado para pagar funcionários da educação. Outro exemplo são os programas de merenda escolar. O repasse também leva em conta o número de alunos matriculados multiplicado por um valor per capita.

3- Por que, então, ainda ocorrem desvios?

Porque resta uma pequena parte dos recursos cujo destino não é regido por ordenamentos rígidos. No nível federal, é o tal 1%, a cota federal do salário-educação, utilizada para as transferências voluntárias.

4- Por que existem as transferências voluntárias?

Porque a União não tem rede de Educação Básica. Nas etapas de ensino que a compõem — da Educação Infantil ao Ensino Médio —, o papel do governo federal é suplementar, com recursos, às escolas de estados e municípios. São esses entes federativos que, de fato, se responsabilizam pela oferta da educação.

5- As transferências voluntárias podem ser consideradas crime?

Se forem feitas corretamente, não. Elas são um mecanismo legal, previsto para o repasse de recursos entre entes federados pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A LRF diz que a transferência, para ser efetivada, requer a celebração de algum tipo de instrumento: termo de fomento, termo de colaboração, acordo de cooperação, termo de execução descentralizada, contrato de repasse ou convênio. Esse último, no caso do FNDE, é a modalidade privilegiada.

6- Como um estado ou município pode pleitear a verba das transferências voluntárias?

Há dois caminhos. O primeiro é atendendo ao chamado de um edital do FNDE — digamos, para a construção de creches. O outro é a demanda direta. Nos dois casos, é preciso apresentar um projeto com a justificativa do pedido, a destinação dos recursos e seu impacto na educação. No FNDE, uma equipe técnica avalia o mérito do projeto e emite um parecer.

7- Se os projetos passam por análise técnica, qual o problema?

A questão é o cobertor curto. Como não há recursos para todos os pedidos, ocorrem negociações políticas para a liberação de verba. Os responsáveis pelo Fundo recebem uma lista de pedidos e têm de tomar uma decisão quanto à alocação. Desde junho de 2020, o FNDE é comandado por Marcelo Lopes da Ponte. Indicação do Centrão, Lopes da Ponte foi chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP), hoje ministro-chefe da Casa Civil.

8- A suspeita, então, é de que os pedidos estariam sendo direcionados?

Sim. Negociações, se regidas por critérios justos e transparentes, fazem parte da vida política. O problema é que, segundo o áudio vazado do ministro da Educação, é cabível especular que o favorecimento de municípios "amigos do pastor Gilmar" "a pedido do presidente da República" não seria guiado pelo mérito dos projetos.

9- A conduta é compatível com a administração pública?

Se a prática de desvios vier a ser confirmada, não. Coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda aponta infrações aos cinco princípios da administração pública: legalidade (fazer apenas o que a lei autoriza, o que exclui intermediação de pastores na alocação de verbas); impessoalidade (afrontada com o favorecimento a amigos); moralidade (pedidos de propina são incompatíveis com a ética e a boa fé); publicidade (o teor do áudio vazado contraria a ideia de transparência); e eficiência (alocação de verba por motivos religiosos se chocam com a obtenção dos melhores resultados com o uso racional dos recursos).