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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Desculpas tortas de Mamãe Falei expõem queda inevitável dos moralistas

O deputado estadual Arthur do Val (Podemos-SP) - Reprodução/Youtube/mamaefalei
O deputado estadual Arthur do Val (Podemos-SP) Imagem: Reprodução/Youtube/mamaefalei

07/03/2022 15h58

Não descarto que um ou outro eleitor do deputado Mamãe Falei tenha ficado genuinamente chocado com os áudios sexistas sobre a guerra da Ucrânia. Como lembra o filósofo Casimiro, todo dia um otário e um esperto saem de casa. Caso se encontrem na rua, sai negócio. Mas penso que os ingênuos representem uma diminuta parte da base do youtuber. A maioria pensa como ele ou, no máximo, considera mimimi cancelar o cara por argumentar que ucranianas são fáceis porque são pobres. Mamãe também são eles.

O moralismo é uma armadilha. Exige seguidores inatacáveis, o que num certo sentido equivale a dizer sobrehumanos. Somos todos seres contraditórios, impermanentes, confusos. Uma hora ou outra, buscar executar ao pé da letra uma cartilha de rigidez moral vai dar ruim. Tanto pior para o moralista que exige dos outros o cumprimento daquilo que ele próprio não é capaz de seguir. O registro mais conhecido desse comportamento é a parábola do fariseu, que aparece no evangelho de Lucas. Dois homens sobem ao templo para orar. O fariseu, de pé, dizia: "Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como os demais homens, ladrões, injustos, adúlteros". Já o publicano, coletor de impostos do Império Romano, mantinha-se à distância e não ousava levantar os olhos enquanto pedia: "Meu Deus, tem piedade de mim, pecador". Nas palavras de Lucas, Jesus usa a narrativa alegórica para sugerir que quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.

Desconhece-se a sabedoria bíblica de Mamãe e sua trupe, o Movimento Brasil Livre (MBL). O que se sabe é que o grupo aposta desde sempre na execração espetaculosa de supostas transgressões como estratégia de visibilidade. O artifício vem sendo usado à exaustão, seja impedindo exposições como o Queermuseu em alegada defesa "das crianças", seja acusando mentirosamente Marielle Franco de ligação com o narcotráfico, seja invadindo hospitais em plena pandemia - de celular em punho, claro - em busca de "provas" de corrupção.

Em condições civilizadas, esse tipo de conduta seria combatida. Mas vivemos num país doente, em que o modus operandi baseado em desinformação e assassinato de reputações rende a seus propagadores cargos no Legislativo. Sobra, porém, o preço cobrado pela revelação da hipocrisia. Em seu pedido de desculpas, Mamãe bem que tentou evitá-lo, mas não conseguiu.

Entre as estratégias, a mais risível possivelmente é a vitimização ("arrisquei minha vida e estou sendo acusado de fazer turismo sexual", "a gente não tem direito nem à privacidade"). De tão desgastada e farsesca, a fraudulenta inversão de posições merece pouca atenção. Os holofotes iluminaram a justificativa de que as declarações seriam produto de seu "lado moleque". Com isso, Mamãe busca um salvo conduto pela infantilização, o que está na moda. De Neymar a Eduardo Bolsonaro, trata-se de justificativa padrão para deslizes - embora disponível apenas para adultos do sexo masculino, como indicam os exemplos.

No caso em tela, é como se Mamãe, que se diz ateu, nos pedisse que acreditemos numa espécie de entidade maligna (o "moleque"), que se apossou de seu corpo puro de ativista ultraliberal para dizer barbaridades num grupo de WhatsApp. É isso o que ele diz quando nos sugere separar "as ações das palavras". O afastamento, por sua vez, exige um outro ato de fé: acreditar que ele e Renan Santos, companheiro de viagem que responde a dezenas de processos, estavam ali apenas por altruísmo - e não para, ao menos em parte (olha o benefício da dúvida em ação!), obter um palco para suas figuras e suas pautas por meio da espetacularização.

Porque, no fundo, é de imagem que se trata. A 2:07 do final do pedido de escusas, Mamãe reconhece textualmente esse aspecto: "Eu fico triste que vocês tenham visto isso, é claro que eu não queria que ninguém [sic] tivesse visto isso". Ato falho ou puro desleixo, Mamãe afirma que só é trapaça quando o fariseu é pego. Cedo ou tarde, acaba sendo.

Em tempo: muita coisa boa se escreveu sobre o episódio - nunca é demais indicar a pungente carta aberta do correspondente internacional Jamil Chade. Mas não foram textos, e sim, charges, as mais potentes sínteses da desumanidade e ausência de empatia simbolizadas pelo episódio. Toni D'Agostinho retrata Mamãe sustentando uma ereção enquanto diz: "Vim prestar minha solidariedade às refugiadas pobres desta guerra". Arnaldo Branco mostra Mamãe perguntando por entre as linhas de arame farpado: "Ei! Você vem sempre aqui?"