Topo

Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Eleitor sem voto definido defende LGBT, família e é antiaborto, diz estudo

TSE
Imagem: TSE

19/02/2022 06h00

Defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo, percepção aguda do racismo na sociedade brasileira e adesão a valores de empatia e solidariedade. Ao mesmo tempo, rechaço à legalização do aborto, clamor por punições mais severas a criminosos e o entendimento de que as tarefas domésticas ainda são atribuição das mulheres. É heterogêneo e pouco coerente o perfil dos eleitores que não se identificam como petistas ou bolsonaristas. O retrato traçado pelo estudo "Cultura política: percepção dos valores da população brasileira não-polarizada" aponta que o grupo sem voto definido alterna, em seus valores e visões de mundo, posições progressistas e conservadoras coexistindo, sem que isso seja percebido como uma contradição.

Produzido pela Fundação Perseu Abramo (FPA), ligada ao PT, o levantamento realizou entrevistas em profundidade com 64 pessoas de baixa e média renda com perfil não polarizado politicamente. Segundo o Instituto Vox Populi, essa camada representa 39% do eleitorado.

"Estudos como o nosso, com metodologias qualitativas, não buscam trazer generalizações, mas encontrar tendências de comportamento que posteriormente podem ser confirmadas em sondagens qualitativas", afirma a socióloga Jordana Dias, coordenadora do Núcleo de Opinião Pública, Pesquisas e Estudos da FPA. "A vantagem da 'quali' é estabelecer uma conversa com o entrevistado, o que possibilita entender melhor as trajetórias de vida e as motivações das escolhas que ele faz", completa o cientista político Matheus Toledo, analista de opinião pública da Fundação.

Uma surpresa é que a turma dos indefinidos rejeita a antipolítica. Ao contrário, faz escolhas no espectro de posições disponíveis - a grande marca é que o processo de seleção de opiniões e visões de mundo é uma espécie de self-service ideológico. "No mesmo indivíduo, encontramos ideias progressistas, conservadoras, liberais. Essas grandes categorias não fazem sentido para esse público", diz Matheus.

O entusiasmo com a união LGBTQIA+ e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo coexiste com a maciça rejeição ao aborto - a prática é vista como crime. Há defesa do endurecimento das leis contra "bandidos" e uma visão meritocrática do sucesso como produto do esforço individual. A família aparece como o esteio fundamental, mas na casa a responsabilidade segue sendo da mulher, ainda que os homens devam "ajudar". Já a percepção de classe segue visão liberal, ditada pelo padrão de consumo e não pelo vínculo profissional.

Uma das hipóteses para a aparente incoerência ideológica está na própria experiência da vida contemporânea. Instituições como família, escolas, sindicatos e mesmo igrejas tendem a perder influência na construção das identidades pessoais. Estas passam a ser cada vez mais condicionadas por trajetórias individuais, o que explicaria a heterogeneidade. "As pessoas constroem percepções a partir de experiências muito próprias. Quando a gente pergunta 'por que você pensa dessa forma?', geralmente a resposta menciona acontecimentos da vida cotidiana e não 'aprendi na escola, minha família ensinou, vi na TV'", conta Matheus.

Nem tudo é singular. Os recortes de gênero e idade permitem apontar algumas recorrências. Entre as mulheres, valores ligados à solidariedade e empatia aparecem muito mais do que entre os homens. Já os jovens se apegam à defesa aos direitos civis. "Não à toa esses dois grupos são os mais resistentes ao bolsonarismo", diz Jordana. A pauta conservadora, por sua vez, tem mais aderência entre homens brancos de maior renda. O racismo estrutural é uma das poucas constantes mencionadas por todos os entrevistados. "Essa percepção disseminada da questão racial é uma novidade recente", afirma o analista. "Não havíamos captado esse aspecto no levantamento anterior, em 2016."

Embora o estudo não tenha caráter eleitoral, é possível extrair algumas hipóteses para a eleição de outubro. A primeira é que um eventual candidato de terceira via que queira representar esse público terá de construir uma bricolagem ideológica tão plural a ponto de impedir uma identidade própria mesmo para uma candidatura que se proponha "de centro". A segunda é que mesmo essa proposta do tipo "cabe tudo" pode não ter efeito. "As entrevistas apontam que esse público não polarizado trabalha com a perspectiva de um segundo turno entre Bolsonaro e Lula. E se preparam para fazer uma escolha quando esse momento chegar", explica Jordana, que enxerga o grupo dos sem voto definido como um contingente "em disputa" pelos dois candidatos. "Não é um perfil que pretende se abster em 2022. As questões individuais fazem a balança pender ora para um lado, ora para outro".

Resta, por fim, definir qual o peso que o debate ideológico e de valores terá ao longo da campanha. A hipótese dos analistas da FPA é que o foco da discussão pública estará nas condições objetivas de vida do brasileiro. "Há uma percepção que a crise ocasionada pela pandemia e pela situação econômica é avassaladora. O peso da inflação, das mortes e do desemprego é muito grande na vida dos entrevistados. A eleição municipal de 2020 já foi pautada por questões mais concretas, creio que em 2022 a tendência seguirá sendo essa", afirma Jordana. "O candidato que tiver respostas mais consistentes para esses problemas tende a se sair melhor."