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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É hora de redescobrir a internet para além das redes sociais

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Imagem: Unsplash

Rodrigo Ratier

30/08/2021 06h00

O polegar move a tela do celular a esmo. Estamos no modo infinite scroll, passeando pela linha do tempo do Instagram, Facebook, Twitter, Tik Tok ou outra plataforma da moda. Ocasionalmente, clicamos em um joinha, um coração, um emoji de bonequinho chorando de rir. Às vezes escrevemos um comentário, quando temos o tempo certo e o humor errado nos engajamos numa briga. Por qual razão, mesmo? Quem é que estava certo, afinal? Difícil lembrar. A fila andou e já estamos discutindo o próximo cancelamento.

Essa versão zumbificada do ser humano guarda pouca semelhança com os sonhos gestados no início da internet. Em "A Inteligência Coletiva", livro publicado originalmente em 1994, o filósofo francês Pierre Lévy anunciava: "A magia dos mundos virtuais está cada dia mais ao alcance do grande público. As "autoestradas da informação" e a multimídia interativa anunciam uma mutação nos modos de comunicação e de acesso ao saber. Emerge um novo meio de comunicação, de pensamento e de trabalho para as sociedades humanas: o ciberespaço".

O sonho era que as inteligências individuais, conectadas em rede, pudessem se somar, resultando em aprendizagem coletiva e troca de conhecimentos. O próprio Lévy, porém, reconhecia que ainda vivíamos a infância da cultura das redes e que aquele novo espaço poderia acabar servindo "ao ódio e à enganação": "Estariam anunciando a vitória definitiva do consumo de mercadoria e do espetáculo? Aumentarão o abismo entre ricos e pobres, excluídos e 'bem-posicionados'? É, com efeito, um dos futuros possíveis".

Que falem os números. Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2019, 58% dos brasileiros acessam a internet apenas pelo celular, percentual que chega a 85% nas classes D e E. Como regra, trata-se de inclusão precária: os planos de dados "populares" permitem acesso livre a serviços como Facebook e WhatsApp (política conhecida como zero rating), mas não à internet. O resultado nada surpreendente é que 55% dos brasileiros disseram acreditar que o Facebook é a internet, conforme pesquisa de 2015.

Isso limita não apenas a autonomia do usuário que quer algo mais do que curtir fotos de bichinhos ou encaminhar memes divertidos. O que está em jogo é o acesso a um direito humano — o acesso à internet é assim reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2011. Exagero? São conhecidos os casos de pessoas que tinham direito ao auxílio emergencial mas não conseguiram sequer pedi-lo porque não tinham internet. A pandemia escancarou que a questão da conexão à rede mundial ainda não está resolvida: o abismo temido por Lévy se concretizou.

É também difícil negar a vitória da espetacularização. Com as redes sociais, a multiplicidade de experiências e de possibilidades do mundo digital recebe uma versão superficial e infantilizadora, com potencial viciante e baseada em esquemas de estímulo-resposta. O modelo das redes privilegia impacto em vez de conteúdo de qualidade. Nesse aspecto, o celular merece ser questionado. Por mais fantásticos que sejam, os aplicativos oferecem pouca capacidade de customização e menos funções (um exemplo prático é comparar seu aplicativo de banco no celular e no computador). Olhando com algum distanciamento, há verdade na constrangedora constatação do tuíte viral:

— Se alguém dos anos 50 aparecesse hoje, de repente, qual seria a coisa mais difícil de explicar para ele?

— Que eu carrego um aparelho comigo, no meu bolso, capaz de acessar todo o conhecimento da espécie humana. E nós o utilizamos basicamente para ver fotos de gatos e discutir com estranhos.

Em nome da "usabilidade" — a facilidade com que as pessoas podem usar uma ferramenta ou aparelho —, celulares e computadores se transformaram em caixas pretas. Nos anos 1990, era costumeiro ter de instalar programas e se virar para fazê-lo rodar de acordo com suas necessidades. Em troca, o usuário aprendia, por tentativa e erro, como funcionava o computador.

Hoje não apenas fugimos de práticas como essa como sequer acessamos a internet para além das grandes plataformas. Desenvolver o "letramento digital" passa por questionar nossa relação com a tecnologia. Não só pensando em termos de liga-desliga, mas avaliando a serviço de que estamos investindo nosso tempo nelas. Os pioneiros da rede a concebiam como local de comunicação e aprendizagem — em resumo, um recurso potencialmente fecundo para a resolução dos problemas da humanidade. Torço para que o Lévy de 1994 siga valendo hoje: "Ainda não é tarde demais para refletir coletivamente e modificar o curso das coisas. Ainda há lugar, nesse novo espaço, para projetos."