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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ensino técnico precisa vencer preconceito de ministro e de progressistas

Conhecido como "sistema dual", o modelo alemão de ensino técnico - que chega a ser exportado para outros países, como os Estados Unidos - permite que o aluno passe um terço do tempo de curso na escola e dois terços na própria empresa - Agnès Bel
Conhecido como "sistema dual", o modelo alemão de ensino técnico - que chega a ser exportado para outros países, como os Estados Unidos - permite que o aluno passe um terço do tempo de curso na escola e dois terços na própria empresa Imagem: Agnès Bel

Rodrigo Ratier

16/08/2021 06h00

Por uma frase bastante reveladora de sua forma de pensar, Milton Ribeiro, o desaparecido ministro da Educação, ganhou os holofotes na semana passada. "Universidade deveria ser para poucos", declarou, em flagrante contradição com a realidade: ela já é para poucos. No Brasil, apesar dos avanços das últimas duas décadas, apenas 18% da população chegou ao ensino superior. Um latifúndio atrás dos 39% dos países da OCDE, o clube das nações mais desenvolvidas do mundo, e mesmo de vizinhos como a Argentina (36%).

Ribeiro alega que o acesso ao ensino superior precisaria ser controlado para favorecer a expansão do ensino técnico. Novamente, os números não nos favorecem: apenas 11% dos estudantes de nível médio cursam essa modalidade. Na OCDE, são 42%, e, em países como a Finlândia, o percentual chega a impressionantes 72%.

Não para de pé o mentiroso raciocínio de que estamos esbanjando nas faculdades quando deveríamos gastar mais na educação profissionalizante e técnica (EPT). Em valores equiparados pelo poder de paridade de cada país, investe-se por aqui 14.200 dólares por universitário, bem abaixo da média de 16.100 dólares da OCDE. O fato é que o Brasil gasta pouco em educação em todos os níveis de ensino. No governo Bolsonaro, a situação tem se agravado. Reportagem de Paulo Saldaña na Folha revelou que o MEC teve em 2020 o menor gasto em educação da última década. Evidência coerente com o projeto de destruição da área promovido pela atual administração federal.

Todo esse preâmbulo para reforçar o óbvio: o atual ocupante do MEC desinforma ao sugerir que as universidades "roubam" recursos dos cursos técnicos. Estão todos de pires na mão. O que não significa que o debate sobre a EPT não possa ser aprimorado. Mesmo em setores progressistas que defendem a educação como direito, subsiste uma visão da área como uma educação "de segunda classe" em comparação ao ensino superior. O pressuposto é de que os cursos técnicos seriam uma educação voltada aos filhos da classe trabalhadora enquanto as elites frequentariam universidades.

Esse dualismo está ultrapassado. Na Alemanha, por exemplo, é rico o intercâmbio entre os dois níveis de ensino, tanto pelas possibilidades de que o técnico - formado e já no mercado, gerando renda para si e sua família - siga estudando na faculdade quanto pelas chamadas "transferências de retorno", quando universitários se matriculam em cursos técnicos para construir conexões entre teoria e prática.

Também não é verdade que o técnico seja, necessariamente, um ensino desprovido de formação "crítica". ETECs paulistas e Institutos Federais conseguem conjugar formação específica com humanidades, desenvolvendo competências para que alunos e alunas possam intervir concretamente no mundo. Em minha própria trajetória, pude vivenciar essa realidade. Antes de cursar jornalismo, me formei técnico em eletrônica. O contato com o mundo do trabalho e o estímulo ao raciocínio lógico não fizeram de mim um autômato. Ao contrário: esse tipo de competência me auxiliou com diferenciais para atuar em uma profissão "de humanas".

Cursos técnicos são mais modulares e podem ser concebidos em variadas durações, em nível médio, pós-médio ou como atualização profissional. O cenário de terra arrasada pela pandemia e pela incompetência governamental acentuam essa vantagem: com políticas coordenadas, seria possível planejar uma entrada mais ágil no mercado, o que beneficiaria sobretudo os jovens, faixa em que o desemprego atinge inacreditáveis 31%. Também é um caminho importante para quem já está no mercado. O relatório Future of Jobs 2020, do Fórum Econômico Mundial, estima que até 2025, 50% dos trabalhadores precisarão de requalificação.

A implantação do novo Ensino Médio, prevista para começar no ano que vem, é uma oportunidade para revalorizar o ensino técnico. Mas é preciso atenção às armadilhas. Em texto no Le Monde Diplomatique, Fernando Cássio e Débora Goulart denunciam que a proposta do Novotec, em São Paulo, está baseada em cursos ligeiros que não precisam de laboratório. Os autores veem a iniciativa como uma forma de escoar a demanda por educação profissional sem que o governo tenha de investir na ampliação da EPT. Não há mágica: em educação, priorizar uma área significa, necessariamente, investir mais nela.

Apostar na EPT seria uma bem-vinda ação estruturante para fazer o país andar. Segundo o Censo Escolar 2020, são 7,6 milhões de estudantes matriculados no Ensino Médio. A elevada evasão nessa etapa mostra que, para muitos adolescentes, a escola não faz sentido. Talvez os sonhos se situem em saídas difíceis e individualizantes - sucesso no esporte, na música, no "empreendedorismo" - porque não estejamos oferecendo uma saída em larga escala para uma vida melhor. Nesse sentido, nenhuma alternativa é mais eficaz do que o acesso à educação de qualidade.

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