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Rodrigo Ratier

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Criticar professor é a nova cortina de fumaça do governo

O deputado federal Ricardo Barros - Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados (PP-PR)
O deputado federal Ricardo Barros Imagem: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados (PP-PR)

Rodrigo Ratier

26/04/2021 06h00

São vagabundos os professores. Ou preguiçosos, aproveitadores, indolentes, desonestos, malandros, canalhas. Há um variado menu de adjetivos que se pode associar aos docentes caso se concorde com a opinião do deputado Ricardo Barros (PP-PR), para quem "só o professor não quer trabalhar na pandemia". Em entrevista à CNN Brasil, o líder do governo na Câmara detalhou seu raciocínio: "É absurdo a forma como estamos permitindo que os professores causem tantos danos às nossas crianças na continuidade da sua formação. O professor não quer se modernizar, não quer se atualizar. Já passou no concurso, está esperando se aposentar, não quer aprender mais nada".

O discurso é mentiroso. Professores nunca deixaram de trabalhar — ao contrário, trabalham ainda mais na modalidade online. Também é requentado. Em setembro do ano passado, por ocasião da primeira leva de reabertura das escolas no país, escrevi o texto "Volta às aulas: tudo pronto para culpar os professores, esses 'insensíveis'". Dito e feito: Barros é só o exemplo mais recente dessa tática corriqueira. Reciclando preconceitos com evidente motivação política, o deputado usa a tática da cortina de fumaça, a tentativa de desviar a atenção do público para um debate qualquer enquanto o fogo corre solto no palco principal.

Haja fumaça: o governo que o parlamentar representa tem razões de sobra para querer que as pessoas discutam outras coisas e apontem dedos para outros responsáveis. Imaginam assim poder esconder seu criminoso fracasso no combate à pandemia, para o qual não faltam exemplos. Lembremos da negativa — tripla negativa — à compra de 70 milhões de doses de vacinas da Pfizer no segundo semestre de 2020. Isso, sim, teria ajudado muito a resolver o problema das aulas presenciais e da economia. Teria nos auxiliado a voltar mais rapidamente à vida normal. Teria poupado milhares de vidas perdidas para o descaso e a incompetência da administração federal, que precisa responder criminalmente por suas omissões e ações de sabotagem. Agora, só resta apelar para espantalhos.

Mas o oportunismo de Barros encontra eco em amplos setores da sociedade. Nos textos em que escrevo sobre a condição docente, são comuns os comentários afirmando que os professores "se vitimizam", são "terroristas", estão se tornando "antipáticos" diante da sociedade. Os críticos apontam que o pico da segunda onda já passou e que é hora de retornar ao ensino presencial. Omitem por conveniência que o número de mortes hoje é o triplo do registrado em julho de 2020, topo da primeira onda. Também não contam que o total de novos casos é 50% maior do que naquele trágico período. Há poucas semanas vimos pessoas sufocando por falta de oxigênio em Manaus, ainda assistimos a capitais em colapso e hospitais com escassez de remédios para intubação. Mas decidimos que já dá para reabrir restaurante, shopping, salão de beleza, cinema e, em alguns casos, até boate. Por que as escolas ficariam de fora dessa?

A questão do retorno ao ensino presencial está longe de ser consensual. Entre o grupo de nações com as maiores incidências de novos casos de covid por 100 mil habitantes — o Brasil está nesse bolo —, há países com escolas abertas (Suécia e Turquia, por exemplo) e fechadas (França, Itália, Uruguai e Argentina, por exemplo). Não estamos "na contramão do mundo", como dizem os críticos. Também não é verdade que os colégios são santuários livres de covid. Por mais que se demonstre que as escolas são ambientes relativamente seguros para as crianças, a recente pesquisa da Rede Escola Pública e Universidade traz evidência para acreditar que isso não se aplica a professores. Ao menos na rede estadual paulista, a chance de contágio seria 3 vezes maior do que a média dos adultos de 25 a 59 anos de idade.

Há quem fez direito a lição de casa. Em algumas escolas particulares e mesmo públicas, encontramos instituições que transformaram adequadamente suas instalações, ampliando salas de aula, cuidando da ventilação natural, propondo encontros ao ar livre, reforçando EPIs e testagem e auxiliando financeiramente seus funcionários para que não precisem recorrer ao transporte público, onde a circulação de ar é insuficiente e o distanciamento social, impossível.

Mas não se pode tomar esses casos virtuosos como regra. Professores sabem disso: além de estarem na linha de frente da educação, há anos convivem com um histórico de promessas não cumpridas sobre os mais variados temas, de salário a jornada de trabalho, de formação continuada a tecnologia em sala de aula. Na crise provocada pela covid-19, sobram razões para desconfiar dos três níveis de governo. Como atender ao chamado de um Ministério da Educação negacionista, que finge que a pandemia mais mortal dos últimos 100 anos não existe e que parece mais empenhado em aprovar o homeschooling do que cuidar das escolas públicas? A governos estaduais como o de São Paulo, que publicou um estudo irrealista dizendo que a taxa de contágio nas escolas era 33 vezes menor do que na sociedade? Ou à prefeitura paulistana, que em 2020 prometeu entregar 465 mil tablets para os alunos, mas até agora atingiu menos de 5% da meta?

Chegamos a uma situação que indica bem o estado das coisas no Brasil: com sua recusa em aceitar o retorno presencial sem segurança sanitária, os professores têm se mostrado a única categoria profissional com força para denunciar a insanidade que estamos vivendo. O contra argumento é que também não há garantias para outros essenciais, de profissionais do transporte público a caixas de supermercado e atendentes de farmácia. É verdade. Diante disso, o que seria mais racional e humano: possibilitar que todos possam fazer seu isolamento com auxílio financeiro adequado até que chegue a vacina — insuficiente por culpa exclusiva do governo, é sempre bom lembrar — ou obrigar todo mundo a trabalhar na marra? Organizados coletivamente como categoria, os trabalhadores da educação fizeram sua opção. A sociedade do cada um por si, também. Apenas um dos lados corre o risco de ver Ricardo Barros no espelho.