Topo

Rodrigo Ratier

A pandemia não acaba com a vacina: Precisamos de mudança social

Apenas tome a vacina e colabore para que o ano 2 da pandemia seja breve - iStock
Apenas tome a vacina e colabore para que o ano 2 da pandemia seja breve Imagem: iStock

Rodrigo Ratier

21/12/2020 04h00

Ainda meio zonzo, um viajante espacial salta para fora de sua máquina no tempo. Ele volta do futuro. Examina os arredores e, diante de um transeunte, pergunta em que época veio parar. "2020", ele ouve, e murmura, resignado: "Hum. Ano 1 da pandemia".

Quando ouvi essa piada pela primeira vez, em junho ou julho, achei apenas de mau gosto. A mesma sensação de quando alguém sentenciou, em junho ou julho de 2018, que Bolsonaro seria eleito presidente. Infelizmente há uma tendência das piadas de mau gosto se revelarem proféticas, de modo que aqui estamos, exaustos e não vacinados, com pouco ânimo para comemorar uma virada apenas simbólica. 2020 entrará para a galeria dos anos que terminam, mas não acabam.

Em uma fantasia otimista, poderia ter acabado ainda no começo do ano. Sou professor e me lembro do primeiro comunicado da instituição em que leciono, falando da suspensão das aulas presenciais entre... 12 e 20 março! A ilusão de que a situação se resolveria rapidamente se dissipou a cada sucessivo comunicado, em cada escola, em cada empresa, falando sobre novos adiamentos. Em agosto, escrevi neste espaço um texto cujo título era "Como lidar com a sensação de que 'isso não acaba nunca'". Se estou repetitivo, é um espelho da vida. Nove dias viraram nove meses, os mais desafiadores em muitas gerações.

Quando acabará? A resposta não é assim tão evidente. Com sorte, a vacina livrará a nós, maricas, conforme Bolsonaro, da angústia e ansiedade infundadas, segundo Pazuello. Com sorte porque a promessa que ela traz vem acompanhada de dúvidas: quando chega? Chega pra todos? Terá adesão suficiente para possibilitar a imunidade coletiva e proteger a quem não pode tomar a vacina?

De todo modo, mesmo com a melhor vacinação possível, a pandemia não acabará. Não acabará porque o mundo que deu origem a ela seguirá operando. A degradação ambiental que muito provavelmente criou as condições para nos pôr em contato com o vírus segue ativa. Também a desigualdade, que em tantos momentos fez da covid uma doença especialmente letal para os mais pobres, com menos condições de praticar medidas de prevenção como o isolamento social. A corrida pela vacina é o exemplo mais recente: o mapa dos países com doses compradas em grande quantidade grita pela ausência do continente africano e da maior parte da América do Sul. Caminhamos para ter, também do ponto de vista sanitário, cidadãos de primeira e segunda classe.

Mas a história é dinâmica. Ao reconhecer que as lógicas predatórias que exaurem o planeta persistem, não devemos cair no fatalismo e na ideia de que o fim está próximo. Não existe dominação sem resistência, a indiferença sem compaixão, a pulsão de morte sem a alegria de vida. Ainda que como humanidade talvez não tenhamos aprendido grande coisa com o mais doloroso período da vida recente, é inegável que há algo de esperançoso acontecendo em alguns grupos e individualidades. Com você, talvez?

Sem ser excessivamente otimista em meio à desgraça, talvez você se reconheça, num balanço de fim de ano, mais forte, mais flexível, mais tolerante consigo e com outros. Quem sabe tenha se engajado em ações de solidariedade, prestado apoio psicológico ou recebido (e compreendido) a importância dele. Ou ainda regulado melhor o desperdício — não apenas de coisas, mas de energia com batalhas internas e externas que, quase sempre, se mostram desnecessárias.

No fim das contas, talvez o enfado do viajante da piada não seja o fim da frase. Podemos imaginar que ele segue falando: "2020? o ano que nasceu algo novo e belo". Algo incipiente, por ora mais individual do que coletivo, mas novo e belo. Ainda podemos sonhar que, com luta, algo melhor florescerá. E se você achar que isso é autoajuda demais, tudo bem. Apenas tome a vacina e colabore para que o ano 2 da pandemia seja breve. Na atual situação, já é um ótimo começo.