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Rodrigo Ratier

Livrar as redes sociais das brigas e da lacração é possível

Getty Images
Imagem: Getty Images

Rodrigo Ratier

07/12/2020 04h00

"Um mundo, muitas vozes", estampava a capa do relatório MacBride, que em 2020 completa 40 anos. Elaborado pela Comissão Internacional para Estudos dos Problemas da Comunicação, presidida pelo irlandês Sean MacBride, o documento publicado pela Unesco questionava a concentração midiática então vigente. A luta era por democratização da comunicação. Quatro décadas depois, com a internet e as redes sociais, finalmente chegamos lá. Hoje, em tese, todo mundo pode falar com todo mundo. Valeu a pena?

"Depende" seria uma resposta honesta. Por um lado, a digitalização ampliou enormemente a possibilidade de grupos excluídos e pessoas comuns exporem suas demandas e pontos de vista. O monitor Internet Live Stats exibe números superlativos sobre a web e seus aplicativos: 1,8 bilhão de sites, 2,6 bilhões de usuários ativos do Facebook, 4,7 bilhões de usuários da rede mundial.

Mas a multiplicidade de vozes virou vilã. Vive-se a era da hiperinformação, em que a quantidade de conteúdo supera, em muito, nossa capacidade para processá-lo. Pior ainda é a qualidade: informações "boas" e "ruins" se tornam indistinguíveis, seja por nossa baixa competência de separar umas das outras, pela queda de qualidade da informação legítima, ou ainda da sofisticação das estratégias de quem usa o espaço público para enganar.

Outra questão é a assimetria de vozes: todo mundo fala, mas pouca gente é ouvida. Se antes o poderio econômico dos grandes conglomerados se impunha, com as redes sociais um novo aspecto alterou as regras do jogo. A chamada algoritmização — definição por fórmulas arbitrárias do que será apresentado na timeline de cada usuário — progressivamente roubou espaço de atores consagrados, que hoje precisam remunerar as plataformas para ampliar seu alcance, e fortaleceu outras vozes.

Em questão de poucos anos, hostilidade e espetacularização viraram moeda corrente, transformando progressivamente o ambiente das redes em um ambiente tóxico, dominado pela lógica do conflito e da lacração. Chegamos à pergunta sem resposta: o sonho de uma arena digital para o debate e o avanço do conhecimento está definitivamente fora de alcance?

Como educador, não serei eu a sepultar a utopia. Mas cumpre reconhecer que a saída, ao contrário do que se costuma afirmar, não está apenas na educação. "A educação não pode tudo", já reconhecia Paulo Freire, embora "alguma coisa fundamental a educação pode".

É evidente que todos nos beneficiaríamos se soubéssemos melhor como se dá o processo de comunicação, da produção à recepção pelas audiências. Eis o fundamental freireano, mas é preciso avançar. Primeiro, porque há quem se beneficie da atual situação de desordem informacional para lucrar política ou economicamente. Segundo, porque nem tudo se resolve no plano racional — é conhecida a adesão à divulgação de notícias falsas de sujeitos razoáveis, mas muito envolvidos emocionalmente com alguma questão em específico (por exemplo, a defesa de um político de estimação).

É preciso buscar uma solução sistêmica. O estado deve intensificar as ações para coibir e punir quem divulga intencionalmente notícias falsas ou promova campanhas de difamação. No Brasil, a CPMI das fake news e o inquérito do STF têm dado passos na direção certa, apesar das limitações.

O jornalismo, por sua vez, precisa "erguer a barra" da qualidade, algo especialmente complicado em um momento de crise aguda do modelo de negócios da mídia comercial. Aí entram as redes sociais e grandes plataformas, que nadam de braçada sem controles nos planos econômico e social. A taxação das "big techs", com o direcionamento dos recursos para o jornalismo profissional, já é medida adotada na Europa.

Por outro lado, a regulação social das plataformas ainda engatinha. As medidas de combate à desinformação e discurso do ódio seguem tímidas, e sempre um passo atrás de quem lucra com essas práticas. E, fundamentalmente, o algoritmo não pode ser um segredo. É preciso reconhecer que as redes sociais se tornaram grandes demais para serem deixadas na mão de particulares.

E, ainda que o ensino não seja a pastilha mágica que o senso comum imagina, é possível e necessário reforçar seu potencial. A educação midiática precisa estar cada vez mais presente na escolarização, e não dispersa em iniciativas pontuais como ainda ocorre. Quebrado o encantamento, cumpre pavimentar ao mesmo tempo diferentes rotas para fugir da distopia. O caminho é longo.