Ganhando ou perdendo, segue a tragédia de ter Trump como espelho

Há escolhas que ficam dentro do campo da argumentação racional. Mais estado ou menos estado, mais liberdade ou mais igualdade, taxação única ou progressiva. As eleições norte-americanas costumavam gravitar em torno de debates dessa natureza. Não é o que ocorre sob Trump. Se é verdade que essas questões seguem presentes, também é certo que elas se tornam pano de fundo à medida que a discussão ética ganha o centro da cena.
Nesse aspecto, há pouco espaço para dúvida. Em seu primeiro mandato, Trump deu mostras evidentes de xenofobia, racismo, homofobia, misoginia, anti-intelectualismo. Da lista de barbaridades pode-se pescar a esmo exemplos ilustrativos, como a dubiedade em relação a movimentos supremacistas brancos que o apoiam, a política de separação de mães e filhos de imigrantes ilegais na fronteira, a afirmação de que o novo coronavírus foi criado em um laboratório da China ou a sugestão de injetar desinfetante contra a Covid-19.
Para dezenas de milhões de norte-americanos e outras centenas de milhões mundo afora, não há nada de fundamentalmente errado com isso. Seguem não apenas apoiando Trump, mas seus métodos e sua retórica.
Por que o fazem? É difícil defender tese semelhante à do "rouba, mas faz". No caso, "xinga, mente, incita a violência, conspira — mas faz". O crescimento econômico modesto no primeiro mandato, na casa dos 2% a 3% ao ano, não difere significativamente dos anos Obama. A escolha racional não explica o apoio de largas parcelas da população à figura controversa.
Se a adesão não está na cabeça, pode ser encontrada no coração, ou mais provavelmente, no fígado. Apostando na beligerância e na desinformação, Trump tem sido bem-sucedido em alimentar o medo, o ódio e o ressentimento. Problemas contemporâneos endêmicos, do desemprego à violência, são atribuídos a terceiros — como convém, são alvos também móveis, podendo estar do outro lado do mundo ou na casa ao lado.
A sensação de ameaça é constante e, para a proteção, o bullying trumpista incessante com pessoas e instituições surge como a solução adequada. Em um país dividido pela retórica do confronto, rebaixado pela incivilidade e tribulado pelo coronavírus, a terra prometida, o "great again" objetivamente nunca esteve tão longe. Sempre estará, pois remete a um passado mítico — a retrotopia de Baumann — e por isso nunca alcançado. No fim das contas, toda a estupidez e crueldade resultam apenas no prêmio de consolação de arrastar mais gente para o buraco. A tragédia é que, para multidões, não há nenhum problema em referendar essa lógica por muito mais que quatro anos.