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Rodrigo Ratier

Ganhando ou perdendo, segue a tragédia de ter Trump como espelho

3.nov.2020 - O presidente dos EUA, Donald Trump, em comício em Michigan - Carlos Barria/Reuters
3.nov.2020 - O presidente dos EUA, Donald Trump, em comício em Michigan Imagem: Carlos Barria/Reuters

04/11/2020 11h01

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Há escolhas que ficam dentro do campo da argumentação racional. Mais estado ou menos estado, mais liberdade ou mais igualdade, taxação única ou progressiva. As eleições norte-americanas costumavam gravitar em torno de debates dessa natureza. Não é o que ocorre sob Trump. Se é verdade que essas questões seguem presentes, também é certo que elas se tornam pano de fundo à medida que a discussão ética ganha o centro da cena.

Nesse aspecto, há pouco espaço para dúvida. Em seu primeiro mandato, Trump deu mostras evidentes de xenofobia, racismo, homofobia, misoginia, anti-intelectualismo. Da lista de barbaridades pode-se pescar a esmo exemplos ilustrativos, como a dubiedade em relação a movimentos supremacistas brancos que o apoiam, a política de separação de mães e filhos de imigrantes ilegais na fronteira, a afirmação de que o novo coronavírus foi criado em um laboratório da China ou a sugestão de injetar desinfetante contra a Covid-19.

Para dezenas de milhões de norte-americanos e outras centenas de milhões mundo afora, não há nada de fundamentalmente errado com isso. Seguem não apenas apoiando Trump, mas seus métodos e sua retórica.

Por que o fazem? É difícil defender tese semelhante à do "rouba, mas faz". No caso, "xinga, mente, incita a violência, conspira — mas faz". O crescimento econômico modesto no primeiro mandato, na casa dos 2% a 3% ao ano, não difere significativamente dos anos Obama. A escolha racional não explica o apoio de largas parcelas da população à figura controversa.

Se a adesão não está na cabeça, pode ser encontrada no coração, ou mais provavelmente, no fígado. Apostando na beligerância e na desinformação, Trump tem sido bem-sucedido em alimentar o medo, o ódio e o ressentimento. Problemas contemporâneos endêmicos, do desemprego à violência, são atribuídos a terceiros — como convém, são alvos também móveis, podendo estar do outro lado do mundo ou na casa ao lado.

A sensação de ameaça é constante e, para a proteção, o bullying trumpista incessante com pessoas e instituições surge como a solução adequada. Em um país dividido pela retórica do confronto, rebaixado pela incivilidade e tribulado pelo coronavírus, a terra prometida, o "great again" objetivamente nunca esteve tão longe. Sempre estará, pois remete a um passado mítico — a retrotopia de Baumann — e por isso nunca alcançado. No fim das contas, toda a estupidez e crueldade resultam apenas no prêmio de consolação de arrastar mais gente para o buraco. A tragédia é que, para multidões, não há nenhum problema em referendar essa lógica por muito mais que quatro anos.