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Rodrigo Ratier

Não voltar às aulas, mas reabrir a escola para discuti-la, diz especialista

A educadora Helena Singer, líder da Estratégia de Juventude na América Latina da Ashoka, organização internacional voltada ao empreendedorismo social - Divulgação
A educadora Helena Singer, líder da Estratégia de Juventude na América Latina da Ashoka, organização internacional voltada ao empreendedorismo social Imagem: Divulgação

05/10/2020 04h00

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É um engano pensar que a questão do retorno às aulas presenciais comporte apenas duas respostas: ou volta, ou não volta. "Pode-se conceber um caminho diferente: reabrir as escolas não para ter aulas como antes, mas para discutir, ao ar livre, em pequenos grupos de adultos e crianças, como reinventá-la". A sugestão é da educadora Helena Singer, líder da Estratégia de Juventude na América Latina da Ashoka, organização internacional voltada ao empreendedorismo social. Doutora em Sociologia pela USP com pós-doutorado em Educação pela Unicamp e atuação prática em diversas escolas, Helena afirma que alunos e professores aprenderam muito na pandemia — mas não na escola. "Há uma perda de sentido na educação formal das 7h30 às 12h, de 2a a 6a, 40 crianças em uma sala. Isso não dá mais. A retomada do contato presencial precisa questionar a forma escolar tradicional". A seguir, os principais trechos da entrevista à coluna.

Você escreveu recentemente o texto "Não voltar, recriar a escola", que motivou nossa conversa. O que inspirou a escrita?
Helena Singer: Foi a constatação de que professores, estudantes e pais não querem retornar às aulas. As pesquisas mostram isso com clareza. Sinto que, para além da pandemia, há uma resistência a voltar porque a escola perdeu um tanto do sentido. As pessoas se deram conta que o sistema está sem rumo.

Mas há o argumento da OMS que as escolas fechadas representariam dano grave à aprendizagem e uma "catástrofe geracional".
Essa ideia só se justifica num contexto muito específico, o da aprendizagem medida por provas e testes. Dizer que ficar longe da escola gera perda de aprendizagem não faz sentido. A gente pode até esquecer dados, fatos e regras gramaticais, mas isso não é aprendizagem. São pontos que a gente decorou para passar numa prova e responder testes.

Houve aprendizagem durante a pandemia?
Muita. Nem podia ser diferente: nas crises é quando se aprende mais. Talvez um dos aprendizados importantes tenha sido o da falta de sentido na rotina de mandar as crianças para escola todos os dias, tantas horas por dia, para aprender uma série de coisas e depois passar em provas. A gente aprendeu também muito sobre a desigualdade brasileira, que ficou escancarada. Quando o governo não se mobilizou, comunidades fizeram doações chegar a quem precisava. Sobretudo os jovens participaram ativamente. Menosprezar tudo isso para dizer que houve "perda de aprendizagem" e "situação catastrófica" é uma coisa muito contraintuitiva

A transposição da rotina escolar para o ensino online deu certo?
Não deu certo nem quando deu certo [risos]. Ou seja, nem quando a escola teve estrutura suficiente para garantir que o ensino acontecesse e os pais tiveram estrutura suficiente para auxiliar os estudantes. O fracasso se mostrou rapidamente na experiência dos professores, dos pais e dos estudantes, todos extenuados. Cem por cento dos professores vão falar das câmaras fechadas e da sensação de isolamento. E os pais vão falar da dificuldade de convencer os alunos a ficar na frente do computador. Um estresse para todos.

O que deveria ter sido feito?
Refletir como é que a gente chegou aqui. O que levou o mundo a essa pandemia, o que ela está causando e que mundo ela encontrou. A emergência climática, a emergência da desigualdade social e a emergência da desinformação que leva ao do autoritarismo, à fragilidade da democracia. Não dá para o sistema escolar ficar alheio a tudo isso. Esses são os temas. E como cada um de nós vai fazer para mudar isso no nosso entorno, já. O currículo, agora, tem de se pôr a serviço disso em vez de ser uma lista de conteúdos que um dia pode ser necessário se você for prestar vestibular.

Mas você viu isso funcionando em algum lugar?
Sim. Pegue a questão da merenda, que em muitas redes públicas não foi disponibilizada imediatamente. Muitas equipes escolares perceberam a situação de emergência alimentar dos alunos e se mobilizaram de diversas formas para fazer chegar recurso -- primeiro, da própria comunidade, depois do governo. Isso é conteúdo. A consciência das enormes desigualdades entre os estudantes que têm condições básicas garantidas e os que não têm é uma grande aprendizagem.

Qual sua opinião sobre o retorno às aulas presenciais?
Como está posta, a proposta da volta não faz sentido. Se voltam 35% dos alunos, como selecionar os estudantes? Qual é o dia letivo que vai ser presencial? Queremos aquelas cenas horríveis para qualquer pai ou educador das crianças com máscara, carteira com proteção de acrílico, passando por túnel de spray antes de entrar, a metros de distância do amigo e sem poder encostar em nada? Isso não atende a nenhuma demanda educacional. Nenhuma possibilidade de educação pode existir nessas bases.

Em vez disso, o que poderia ser feito nos próximos meses?
Poderíamos pensar na reabertura da escola, com grupos pequenos de pais, alunos, professores e funcionários. Ao ar livre, conversariam sobre essa situação que estamos vivendo, sobre tudo o que a gente aprendeu nesse período, sobre como é que a gente pode recriar a escola em outras bases. Faríamos a primavera da educação, como definiu uma educadora.

Podemos considerar isso como uma "volta às aulas"?
Na verdade é não voltar, porque voltar dá a ideia que você retorna para aquilo que já existia. É voltar para o prédio escolar não para as aulas, mas para criar uma escola nova. Não precisa ser apenas no prédio escolar: parques e praças são lugares para recriar os vínculos que fazem a escola, entre os estudantes e entre os estudantes e os educadores. Assim retomaríamos o contato presencial questionando a forma tradicional -- das 7h30 às 12h, de 2a a 6a, 40 crianças em uma sala. Isso não vai dar mais.

Você está falando de gestão democrática.
Mas democrática de verdade, não daquele jeito burocratizado de muitos conselhos escolares, em que os diretores escolhem os pais mais próximos e eles não representam os outros. Uma coisa mais verdadeira mesmo. Na pandemia, muitos pais aprenderam bastante sobre o que e como os filhos estão aprendendo. Hoje, estão mais qualificados a pensar junto como é que a gente reinventa essa escola que precisa ter outros objetivos, outro currículo e outra tecnologia.

Não é uma proposta utópica? Quais os elementos concretos para que ela aconteça de verdade?
Eu acho que ela era mais utópica em janeiro do que é hoje [risos]. A gente pode reorganizar os grupos e as relações com a participação da comunidade -- por exemplo, um ou mais adultos com 12 a 15 crianças dentro de um processo de reflexão e de ação nesse mundo que a gente precisa transformar urgentemente. O que eu acho que falta é uma agenda, uma mobilização da sociedade civil. Se isso ocorrer, não acho impossível transformar.