Topo

Rodrigo Ratier

Empreendedores de favela precisam de uma "cesta básica" digital

01/06/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Imagine que você é a dona de um minibuffet numa favela. Ou um típico faz-tudo: eletricista, pedreiro e encanador, atuando também em uma comunidade. A renda do negócio, na casa dos dois mil reais mensais, supre as necessidades de uma casa com três pessoas. Aí chega a pandemia e atinge em cheio seu negócio. É preciso parar. Seu auxílio emergencial segue em análise ou foi negado — 37% dos moradores de favelas que pediram não receberam o benefício. Com nome sujo, não dá para conseguir crédito no banco. Para onde correr?

Essa situação difícil tem sido a realidade de muitos "nanoempreendedores" — trabalhadores por conta própria de pequena renda, espinhas dorsais da atividade econômica na periferia. Boa parte deles têm sobrevivido de doações de cestas básicas. "Pense na mulher negra de 2 ou 3 filhos que conseguia dar à família a infraestrutura básica", descreve Paulo Rogério Nunes, publicitário e cofundador da Vale do Dendê, ONG que fomenta o empreendedorismo nas periferias. "Com a cesta básica, chega algum alimento. Mas não o gás, a água, a luz — e internet. Para uma empreendedora, é um retrocesso secular. É preciso um outro olhar."

Parte da mudança está em rever o conceito de ajuda emergencial. "Quando pensamos nessa ideia, estamos pagando boletos do passado", compara João Souza, presidente do Fave.la, outra ONG que atua com formação para o empreendedorismo na base da pirâmide. "Fome, saneamento, sistema de saúde, baixo acesso a bens e serviços são emergências de décadas atrás. Seguem sendo carências, mas é preciso olhar para a frente. A emergência do presente é a cidadania digital".

O argumento dos ativistas é que é possível usar o tempo de isolamento social e a parada forçada do comércio para reposicionar os negócios periféricos. A dona de minibuffet do início do texto pode migrar seus serviços para uma opção de delivery. O faz-tudo, por mais que tenha de permanecer parado, pode criar páginas em redes sociais e um cadastro de possíveis clientes no WhatsApp para voltar mais forte no fim da quarenta. Para isso, porém, é preciso que tenham condições de se digitalizar. Insumos básicos: WiFi, crédito no celular e algum dinheiro para investir em postagens patrocinadas no Facebook ou no Instagram.

"A cesta básica da periferia precisa incluir essas demandas", defende João Souza. E também educação financeira. "É possível pensar em mentorias com os empreendedores para decidir, por exemplo, que dívida pagar agora e o que renegociar".

João e Paulo Rogério integram uma coalização de seis organizações que ambiciona levar esses serviços para 500 empreendedores negros e periféricos em oito estados brasileiros. Batizado de Éditodos, o fundo de apoio já arrecadou 80% da meta de 1 milhão de reais. Além de um repasse de 2 mil reais, cada empreendedor recebe capacitação para saber como melhor investir o dinheiro para reinventar seu negócio.

Reinvenção também é a palavra para o próprio conceito de doação. Reconhecendo que a pandemia gerou uma bem-vinda "corrente do bem" por parte de empresas e pessoas físicas, os ativistas têm proposto aos investidores a pensar no legado da ação. Nesse sentido, a própria cesta básica pode ser questionada. "Boa parte delas é montada por grandes empresas fora do território vulnerável. No médio prazo, podem quebrar mercadinhos da favela", diz João.

A maior provocação, porém, é sobre o impacto sistêmico do dinheiro doado: foca no assistencialismo — que pode ser necessário, mas é limitado — ou ataca a raiz do problema? "Temos indicado a importância do segundo caminho", afirma João. "Se o doador possui capital financeiro e social na forma de rede de contatos, isso também pode ser mobilizado para essas outras urgências. A cesta básica é fundamental, mas é preciso um olhar estratégico para não descuidar do que vem depois", finaliza.