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Rodrigo Hübner Mendes

O caseiro e o educador  

29/08/2020 04h00

Boa parte dos fins de semana da minha adolescência foram vividos em um sítio da família, em Itapevi-SP. Em uma chácara vizinha, morava e trabalhava como caseiro o Daniel. Habilidoso, acabava sempre prestando alguns serviços para minha família. Outro dia, quis saber um pouco mais sobre sua história, o que o tinha levado até ali e acabei me deleitando com uma narrativa dessas que ensinam a gente.

Em meados da década de 1980, Daniel trabalhava como vigia em uma empresa do bairro de Perdizes e dividia com amigos um apartamento na região. Um dia, mudou-se para seu prédio um senhor muito simpático que trabalhava como professor na PUC. Pouco tempo depois, num começo de noite, Daniel voltava do trabalho sob uma pancada de chuva quando viu, na frente do prédio da faculdade, seu novo vizinho abrigando-se sob uma marquise. Não teve dúvida: foi até ele e ofereceu uma carona no guarda-chuva. "Era apertado, mas dava para dois", conta. O homem aceitou a gentileza e foram ambos conversando até o prédio.

Foi o começo de uma grande amizade, que ultrapassava as diferenças. Um era vigia, o outro, professor em uma das mais importantes universidades do Brasil. Mas sempre havia tempo para uma boa conversa. Com o tempo, Daniel foi descobrindo mais sobre aquele homem. Muitos anos antes, ele havia desenvolvido uma importante pesquisa na área da educação. O estudo explicava o processo que poderia levar um adulto sem escrita a se alfabetizar, a partir da reflexão sobre sua própria realidade. Com seu método, havia conseguido ensinar centenas de adultos a ler em menos de três meses. Durante o período da ditadura militar no Brasil, foi obrigado a sair do país e acabou tornando-se famoso lá fora, uma referência, em virtude do seu método.

Contava tudo isso a Daniel na mesma medida em que pedia a ele que também contasse sua história. A convivência era tão boa que Daniel acabou sendo convidado para cuidar de uma chácara em que o professor passava os finais de semana e férias. Lá, casou-se e, ao lado de sua esposa, criou seus três filhos aos quais conseguiu oferecer uma boa educação. Estudaram em um colégio de freiras na região e sempre contaram com o incentivo e o apoio do professor para que não abandonassem os estudos. Formaram-se em História, Enfermagem e Física. Foram anos de convivência e troca de ideias entre aqueles dois amigos: o caseiro e o professor, chamado Paulo Freire. Freire se foi em 1997. Daniel mora na chácara até hoje.

Nessa semana, a histórica aprovação do novo Fundeb, instrumento imprescindível para que avancemos na qualidade da educação pública oferecida no Brasil, representa uma homenagem que o tempo faz ao patrono da educação brasileira.