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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quais os impactos da romantização da adoção para quem é adotado?

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Imagem: iStock

Larissa Alves*

18/08/2022 06h00

Adoção interracial, homoafetiva, monoparental, tardia. Em um universo de tantos recortes sobre adoção - e parentalidade - quem é que fala sobre os adotivos? Será que ser adotado restringe-se à ideia de ser filho?

Como adotiva, respondo: não. Uma coisa é o universo dos pais, uma via possível para o desejo de ser família, por meio do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).

Outra coisa, porém, é o corpo que inverte a lógica que os exclusivamente biológicos vivem: ser adotivo é precisar migrar e, como reflexo de um problema social, a adoção marca a existência para além da filiação.

É preciso levar isso em conta quando se fala em adoção. A adoção não é um processo que diz respeito apenas às vias de parentalidade.

Uma pesquisa divulgada em 2013 pela American Academy of Pediatrics revelou que o número de tentativas de suicídio entre adotivos é mais de quatro vezes maior do que entre pessoas que não foram adotadas. Infelizmente, pesquisas como essa ainda são poucas e estão sendo feitas fora do Brasil.

Aqui há uma espécie de tabu da adoção: se fala sobre o desejo de parentalidade, sobre os resultados positivos da adaptação, sobre a ideia de "mudar de vida".

Adotivos, por medo de incomodar a família adotiva ou serem julgados como ingratos pelas pessoas em geral, têm receio de aprofundar o que a adoção significa na própria vida, o que impede processos de amadurecimento e atrapalha dos relacionamentos à vida profissional. E eles não só se auto censuram como crescem sem referências.

Foi assim comigo: aos quatro anos me contaram que eu era adotada, mas foi só aos foi só aos vinte e cinco que entendi o que isso significava, e totalmente ao acaso. Ao fazer um estágio em outro estado, finalmente tive contato com outra adotada. Conversa vai, conversa vem, identificamos muitos pontos em comum, do desejo de agradar à confusão emocional sobre pertencimento.

Curiosa sobre o fato, fui para a internet pesquisar se era uma coincidência ou algo comum para adotivos. Qual foi a minha surpresa ao constatar que não havia materiais sobre o emocional adotivo, mas apenas conteúdos para quem buscava adotar ou recém adotou, em uma perspectiva de que bastava adotar, adaptar e pronto. Era 2019 e o livro "Vida de adotivo", do jornalista Alexandre Lucchese, considerado hoje uma referência sobre o tema, ainda não havia sido escrito.

Na falta de referências, fui para as redes sociais buscar outros adotivos para conversar e isso transformou a minha vida. Transformou também o meu entendimento de que algo tão vital para uma melhor qualidade de vida não poderia estar sujeita ao acaso - nem desmerecida em pesquisas científicas, censos e discussões públicas.

Em um universo de mais de 200 grupos de apoio aos pais adotivos no Brasil, há apenas uma associação representativa dos filhos, a Adotiva (Associação Brasileira de Pessoas Adotadas), que eu sou uma das idealizadoras, fruto desse encontro de adotivos na internet.

O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento junto ao Estatuto da Criança e do Adolescente conferem um caminho muito sério e importante na luta pela adoção: é a partir desses mecanismos que se previne a "adoção" ilegal, aquela que não garante direito à biografia e pode cair facilmente em situações em que a criança entregue viva em situações análogas à escravidão.

Foi uma luta conferir aos filhos adotivos os mesmos direitos e deveres que os filhos biológicos, sendo incluídos no direito à herança, por exemplo. Mas é preciso que se pense na pessoa a ser adotada como um indivíduo mais do que filho de uma nova família. Só assim garantimos um olhar a longo prazo para adotivos.

Será, então, que o SNA é pensado para o adotivo? A longo prazo, quais os impactos da falta de referências e da exposição romantizada da adoção para os adotivos? Conseguirão eles acessar as próprias ambivalências sobre a adoção? Acolhemos adotivos que denunciam adoções disfuncionais, em que seu direito à biografia é negado e chantagens emocionais são feitas? Há fiscalização adequada do pós-adoção e garantia do direito à biografia? Apoiamos processos de reencontro biológico e criamos especializações sobre isso, ou a ideia é de que a pessoa "foi" adotada e pronto? Como pensamos a realidade das casas de acolhimento e abrigos? E a vida das pessoas que nunca chegam a ser adotadas?

A pergunta que precisa ser feita é: por que, ano após ano, há bebês, crianças e adolescentes precisando ir para outro lugar? É necessário chegar na origem da adoção. E não dá para falar disso sem pontuar a colonização e a desigualdade social.

De acordo com o livro "História social da criança abandonada", no Brasil pré-colonização não havia a ideia de adoção: os indígenas não abandonavam seus filhos. Dizer que a adoção "sempre existiu", portanto, é trazer um recorte europeu e de família nuclear.

A adoção não deveria ser necessária, mas é: está intrinsecamente ligada às desigualdades sociais, falta de políticas públicas no campo da saúde e educação, abandono estrutural, capitalismo e, como dito, colonização.

Não é a adoção que deve "resolver" questões sociais complexas, mas sim o que a origina que precisa ser resolvido, prevenido, combatido. As campanhas de incentivo à adoção são sim importantes, mas aumentar o número famílias adotivas não mexe no cerne da questão - isso sem falar nas violências institucionais que causam adoções compulsórias, e impedem famílias de origem de estar com seus filhos. Falar sobre isso não é desestimular adoções, mas pensar a longo prazo. Quando focamos só em adoção, restringimos o tema a um viés familiar.

Já quando pensamos em responsabilidade coletiva, ampliamos a atuação, incluindo mais gente, políticas públicas, iniciativas privadas e campanhas em geral. Em comparação com países menos desiguais, o número de disponíveis (palavra horrível para falar de vidas!) para adoção diminui - essa deve ser a nossa meta no Brasil.

Se o tripé da adoção passa por famílias de origem, adotivos e adotantes, o tripé da mudança social inclui políticas públicas pré-adoção (para evitar sua necessidade), incentivo à adoção (para lidar com o número de abrigados atual) e melhoria da realidade dos abrigos (suporte econômico e emocional aos abrigados e também aos não adotados). Centrar a responsabilidade sobre uma situação tão estrutural assim na instituição familiar é muito pouco - ilusório até. Se apenas quem pensa em adotar se interessar pelo tema, estaremos muito longe da solução!

Para ler:

A resistência (Julián Fuks)
Vida de adotivo ( Alexandre Lucchese)
Por que ser feliz quando se pode ser normal? (Jeanette Winterson)
Cativeiro sem fim (Eduardo Reina)
Procurando Jane(Heather Marshall)
Pequenos incêndios por toda parte (Celeste Ng)
Nunca deixe de acreditar (Christina Rickardsson)
Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção (Maria Antonieta Pisano Motta)
Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida (Xinran)

Para ver:

This is us
Três estranhos idênticos
Colin em preto e branco
Wonder boy
Losing Isaiah
Found

Para seguir:

- @olharadotivo
- @vidadeadotivo
- @adotivabrasil
- @euadotiva
- @eugrazidurand

*Larissa Alves é filha adotiva, co-fundadora da Associação Brasileira de Pessoas Adotadas (ADOTIVA), autora da página @olharadotivo e cocriadora do podcast Adotivas, pesquisadora da adoção pelo viés dos adotivos, jornalista pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e bacharela em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de Campinas.