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OPINIÃO

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Veto presidencial coloca em risco educação na Amazônia

Célio Cavalcanti Filho/ Divulgação
Imagem: Célio Cavalcanti Filho/ Divulgação

Aerton Paiva*

14/08/2022 06h00

Ao aterrissar em Porto de Moz, no Pará, região Norte do Brasil, é possível perceber que, no lugar dos engarrafamentos das grandes cidades, os barcos seguem o fluxo do rio e a dinâmica e o acesso a saneamento básico, energia elétrica e educação vão enfrentar barreiras geográficas e financeiras maiores do que os grandes centros.

E, partindo da premissa de que é direito de todo cidadão ter acesso ao ensino de qualidade, no Brasil (e em alguns países do mundo), um modelo de ensino absolutamente revolucionário e inovador (apesar de já ser praticado há décadas), vem garantindo educação de qualidade e fortalecimento das culturas regionais para centenas de jovens nas regiões mais afastadas: as chamadas escolas família agrícolas (EFA) e casas familiares rurais (CFR).

Baseadas na pedagogia da alternância - em que o aluno passa 15 dias na escola e 15 dias em casa -, oferecem uma educação diferenciada, já que o currículo dialoga com educação ambiental, uso dos recursos de forma racional, conservação da biodiversidade, preservação do meio ambiente e autossuficiência nos processos de produção e capacitação. A alternância permite oferecer as vivências no território como elemento fundamental no processo formativo dos alunos, além de evitar drasticamente a evasão escolar.

Essas escolas, EFAs e CFRs, são reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC) e recebem um apoio financeiro para a sua subsistência. Apoio importante, porém, insuficiente e intermitente. O que demanda uma articulação intensa da comunidade para mobilizar recursos locais e atrair parceiros externos que, com muita dificuldade, ajudam a manter o sistema operando.

Agora, uma medida anunciada pelo Governo Federal acabou com a oportunidade dessas escolas terem, de fato e permanentemente, sua pedagogia reconhecida para a modalidade da educação no campo. É o que previa o projeto de lei da Câmara n° 184, de 2017, aprovado em maio, mas que foi vetado integralmente pela Presidência no final de junho.

O argumento para tanto foi uma questão teórica, pontual, que está no texto da lei. Segundo o site do Senado Federal, a matéria "contraria o interesse público e incorre em vício de inconstitucionalidade ao substituir a expressão 'escolas rurais' pela expressão 'escolas do campo', de sentido mais restrito, pois estas se referem somente às escolas situadas em ambientes rurais e que se enquadram na modalidade de educação do campo, enquanto aquelas podem se enquadrar nas modalidades de educação do campo, de educação escolar indígena e de educação escolar quilombola".

Quem conhece de perto as escolas família, como o Instituto Interelos, sabe do enorme desafio que é atuar intensamente para promover conexões que ajudem a minimizar a intermitência financeira desse sistema. É visível o impacto, a diferença que o ensino rural faz na vida de alunos, professores, de toda a comunidade. Com tudo isso, é possível afirmar que a argumentação do Governo Federal para vetar esse projeto de lei, em não reconhecer a pedagogia da alternância, prejudica ainda mais o repasse de recursos para essas escolas. É um desperdício de oportunidade sem precedentes.

A proposta do projeto vetado era extremamente válida porque aumentaria a visibilidade de um modelo de educação que é absolutamente pertinente à realidade rural brasileira, é determinante principalmente para os filhos dos pequenos produtores. Se estivesse em vigor, a lei facilitaria a liberação de recursos e, consequentemente, a melhoria dos equipamentos, o investimento em profissionais de educação e evitaria as constantes interrupções no aprendizado pelos jovens, por falta de recursos

O governo brasileiro, ao vetar tal projeto de lei, mais uma vez atua para desmobilizar tudo aquilo que cria massa crítica e que fortalece as culturas regionais. O argumento utilizado para o veto, de que as escolas famílias propiciam um tratamento não isonômico, é totalmente enganoso. Essas escolas não têm nenhum critério de exclusão, não há discriminação. Muito pelo contrário, essas instituições acolhem e moldam o seu projeto político pedagógico à realidade de cada lugar, construindo as bases da escola junto com a comunidade. Uma escola no Amapá, por exemplo, construída dentro de um quilombo, fez uma adequação pedagógica trazendo conteúdo sobre o período da escravidão no Brasil e sobre as questões quilombolas. A autonomia, portanto, faz parte dessa modalidade de ensino.

No atual momento em que vivemos, nos resta agora retomar essa discussão após a eleição, na esperança de que o próximo governo seja mais sensível a essa causa. É possível derrubar o veto, há possibilidade jurídica para isso, mas há um longo caminho pela frente a percorrer. Da nossa parte, seguimos mobilizando a sociedade civil organizada e o setor empresarial para iniciativas que contribuam com a sobrevivência das escolas família agrícolas e casas familiares rurais, investimento tão fundamental na região brasileira mais castigada nos últimos anos, a Amazônia.

*Aerton Paiva é administrador de empresas e antropólogo, fundador e presidente do Instituto Interelos. Atuando há mais de 20 anos em projetos de socioeconomia, foi responsável pela modelagem e implementação do Programa Terra Forte, junto ao Governo Federal, entre 2013 e 2018, voltado à implantação de agroindústrias em assentamentos de reforma agrária, entre inúmeros outros programas.